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Marcos Monteiro
O estupro da adolescente por cerca de trinta homens, que
chocou fortemente a nossa imaginação e a nossa sociedade, me levou à cena da
votação do impeachment no Congresso Nacional. Ali, de certa forma, também se
consumava o estupro de uma mulher, a presidenta Dilma, cena pública
despudorada, divulgada para o mundo todo, em que se misturavam orgasmo e
crueldade, mistura que deveria ser impossível em nossa civilização. Pelo menos
um deputado teve a coragem cínica de expressar o que estaria implícito na sanha
coletiva: o impeachment era a continuidade da tortura a que a presidenta fora
submetida muitos anos antes. E faz bem lembrar que na ditadura a tortura de mulheres
era acompanhada do estupro.
Antes do estupro da adolescente muita coisa aconteceu.
Homens se reuniram, se combinaram e se organizaram para perpetrar o crime.
Tenho curiosidade sobre a configuração social desse grupo de estupradores. Trinta
pessoas não deixa de ser uma boa amostragem de nossa representação social. Gostaria
de saber a classe econômica, a etnia, a religião, a formação escolar de cada um,
porque infelizmente a cultura do estupro pervade toda a sociedade e não acho
impossível algum jovem extremamente religioso e de boa formação escolar ter
participado da orgia.
De modo semelhante, antes da assembleia que determinou o
impeachment, muita coisa aconteceu pública e sub-repticiamente. A cada dia
surge uma nova evidência do que ocorria nos bastidores, e a constatação do que
já sabíamos: a justiça tem ritmos próprios. Age rápido quando lhe interessa
depor um senador, ou mesmo autorizar procedimentos e rituais políticos
suspeitos, e é extremamente lenta para depor corruptos notórios ou investigar
acusações de líderes muito denunciados, inclusive de dirigirem embriagados ou
de agredirem mulheres.
Desse modo, é impossível evitar o sentimento de que a nossa
justiça e a nossa democracia também foram estupradas e, infelizmente, a bancada
evangélica participou maciçamente do estupro, com a estarrecedora aprovação das
poucas mulheres ali representadas.
Aliás, a bancada feminina na Câmara teve um comportamento
digno de atenção. Nela, tomada isoladamente, o impeachment de Dilma foi
aprovado sim, mas por maioria simples, a diferença foi pequena. Mas esse grupo
de deputadas poderia ter impedido o estupro da presidenta se votasse em bloco. Dolorosamente,
entretanto, algumas mulheres tendem a reproduzir o discurso cultural que lhes causam
violência e culpabilizam a vítima. A presidenta Dilma e a adolescente teriam
sido estupradas por erros delas mesmas, embora não haja acusação de crime algum
contra ambas.
A adolescente, a presidenta Dilma, a justiça e a democracia,
são quatro vítimas da cultura do estupro. Mas o impeachment tinha como objetivo
uma violência maior, a qual ainda se encontra a caminho. Com ferocidade
incestuosa, o Congresso Nacional se prepara para estuprar a pátria, a “nossa
mãe gentil” já tão desnudada. A saúde, a educação e outros parcos direitos dos
seus filhos trabalhadores se encontram sob ameaça e, se o seu solo quase não
mais lhe pertence, prepara-se mais uma invasão no seu subsolo: da mesma maneira
que lhe arrancaram o minério, pretende-se lhe invadir as entranhas e arrancar o
petróleo, exatamente quando se descobre a riqueza inesperada de um exuberante
pré-sal.
As metáforas, as figuras, as imagens e as palavras aqui
entrelaçadas não têm como ser suaves porque o momento não está para a poesia ou
para as cantigas de ninar. Diante de tanta violência física e simbólica, todo
texto precisa se tornar grito de dor, de horror, de revolta e de denúncia, na
esperança de que a resistência vá se espalhando e sacudindo a todas e todos, em
coletivo despertar.
Parabéns pela reflexão.
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