pragmatismopolitico |
Marcos Monteiro
Sobre o massacre acontecido domingo passado, em Orlando,
Flórida, EUA, é imperativo que se derrame uma enxurrada de textos e uma dose
maciça de silêncio. Muita coisa se tem dito e muita análise de qualidade tem
sido feita, mas a impressão que tenho é de que é muito pouco ainda. Quase como
se fosse necessário parar todo outro pronunciamento e toda outra notícia para
nos debruçarmos sobre esse momento, simbólico e assustador. De repente, toda a
violência humana invadiu aquela boate, tornada uma espécie de buraco negro
social, sugando toda a energia ao redor e aprisionando toda luminosidade
humana.
Nesses momentos, simplesmente detesto as notícias
televisivas. Porque o repórter precisa transmitir informações e fazer
comentários no tom adequado com a emoção estudada, e o massacre me deu o
direito de não ser obrigado a suportar isso. O jornalista hoje em dia tornou-se
um fofoqueiro profissional e um ator de si mesmo, a serviço de qualquer coisa.
Por isso, sobre tamanho derramamento de sangue precisamos de um derramamento de
textos, desde textos panfletários até textos acadêmicos, com o compromisso
apenas de que sejam textos dolorosos e indignados porque o massacre de seres humanos
é massacre da humanidade. Também quando um ser humano assassina outro,
assassina no outro a sua própria humanidade. Emblematicamente, Omar Mateen
recebeu de volta a violência que desencadeou e foi morto pela polícia.
O massacre ocorreu nos EUA, espécie de paraíso da ideologia
neo-liberal, mas confortavelmente o assassino tinha nome de estrangeiro e era filho
de afegãos, o que todo mundo tenta ressaltar, as vítimas ainda são anônimas.
Convenientemente também, o Estado Islâmico reconheceu a autoria, o que limita o
massacre a um atentado terrorista feito por estrangeiros, fanáticos de outra
religião: foi um massacre autorizado.
Mas, esse ato é o holograma de uma totalidade cultural de
violência em que estamos mergulhados, violência física, estrutural e simbólica.
No campo do simbólico, a violência sagrada ocupa um lugar destacado porque
propriamente sagrada, feita em nome de absolutos que não precisam, por definição,
prestar contas a ninguém. Então, mais do que nunca textos teológicos dolorosos
e indignados precisam fazer parte da cachoeira de textos de que precisamos. Um
pastor batista fez imediatamente um pronunciamento classificando o massacre
como “excelente” e disse banalizando a dor de centenas de “gays” e de suas
famílias que “podíamos hoje dormir mais
tranquilos”. Afinal, os “sodomitas” precisam desaparecer da sociedade porque
são “abominação”.
Infelizmente, esse pastor não
está sozinho. Sermões, estudos, pronunciamentos públicos ou rancorosos ou
disfarçados de amorosidade, campanhas para negar mais direitos aos gays, são
organizados por pastores e igrejas cristãs ocidentais, que reforçam preconceito
e discriminação e autorizam direta ou indiretamente a violência. A luta contra
a chamada “ideologia de gênero” na educação é apenas a luta para que as
crianças não tenham nas escolas a oportunidade de contraponto a uma educação
homofóbica que recebem em casa e nas igrejas cristãs, em sua maioria.
A homofobia está incrustrada
igualmente na estrutura social. Desde a discriminação diante da oportunidade de
trabalho até à proibição implícita de um comportamento homossexual visível, na
maioria dos lugares públicos. Os meus amigos homossexuais sabem que não podem
passear de mãos dadas em um Shopping Center, por exemplo. Beijo na boca, nem
pensar, isso é um direito apenas para héteros. A comunidade evangélica
organizou uma verdadeira cruzada contra uma novela em que aparecia um beijo na
boca entre mulheres no primeiro capítulo e nunca organizou nenhum movimento
contra o assassinato sistemático de gays, nem vai fazer algum pronunciamento
público contra o massacre acontecido agora. Entre o beijo e a morte, o problema
é o beijo.
A existência de boates gay é a denúncia de um apartheid
sexual óbvio. Todo mundo sabe que numa boate de todas e todos, gays não podem
dançar juntos, desejem ou não desejem, se beijarem na boca ou se esfregarem
escandalosamente. Héteros podem. “Gay” significa alegre e toda alegria não
normativa é perigosa, já achava a teologia de “O nome da Rosa”, o famoso
romance de Umberto Eco. Um lugar programado para a alegria e para o prazer se
tornou em matadouro de carne humana. E parte da população oferece esse
sacrifício humano a Alá, a Javé e até mesmo a Jesus Cristo.
Então, Omar Mateen é
apenas o braço armado de uma sociedade homofóbica e o momento é de profunda
reflexão sobre os instantes em que cada
um de nós colocou mais pressão na panela e mais lenha na fogueira. O simples
fato de repassar aquilo recebido sem exames mais profundos e com um tipo de
misericórdia melosa e superficial nos faz cúmplices, faltando apenas a
honestidade do Estado Islâmico de reconhecer a autoria. O massacre também foi
autorizado por nossa teologia que tem cheiro de mofo e está manchada de sangue.
Não dá mais para esconder.
Precisamos de uma abundância de textos e depois de silêncio.
Precisamos desautorizar todo pronunciamento, toda chacota, todo riso nervoso
diante de piadinhas sem graça, toda repetição de chavões populares, todo sermão
superficial e generalizante, toda discussão descabida, todo estudo bíblico
superficial, todo debate inútil sobre se o amor entre homossexuais é pecado.
Porque diante de tamanha violência sobre tantas vítimas, um minuto de silêncio
é muito pouco, precisamos de uma eternidade.
Caro amigo Marcos, diante de tal acontecimento na boate e deste tsunami que você acabou de colocar pra fora, a ebulição que está acontecendo em seu coração, vejo aqui expresso em forma de textos e imagens. Fiquei sem palavras, sem comentários, eu também percebi muita frieza da TV quando vi a reportagem, mas ver alguns depoimentos de sobreviventes me fez ficar no mínimo abismado e única palavra que me veio a mente foi misericórdia Senhor...
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