domingo, 3 de abril de 2016

Carta que nunca precisará ser enviada, espero...

blodaresenhageral


Prezado Senhor

Hoje, 31 de março de 2038 é uma data muito importante. Faz vinte e dois anos de um dia que considero decisivo para a história do nosso país. Naquela tarde eu estava nas ruas junto com muitos manifestantes lutando contra o golpe que infelizmente aconteceu.

Talvez ainda se lembre de mim. Éramos vizinhos e às vezes conversávamos cordialmente, apesar das divergências ideológicas, e isso pode ter sido a minha vantagem. Não fui investigado nem grampeado naquela época.

Depois veio a nova ditadura militar e os dias se tornaram sombrios para todo o mundo. Sei da sua prisão desses tempos, o que foi uma grande surpresa para mim e, pode ter certeza lamentei bastante, mas ditadura é ditadura. Eu mesmo, completei 86 anos de idade e estou morando fora do país, não por minha vontade.

Essa carta pretende ser confidencial (espero que não haja vazamentos) pois tenho algumas perguntas que me inquietam. Nunca duvidei da sua integridade, apesar de todo mundo comentar sua ligação com o PSDB. Mas, porque você não mandou investigar exatamente aqueles cujos crimes eram notórios e escolheu a tortuosa via de ligar somente um grupo de um mesmo partido a tudo que de ruim acontecia no país?

Quando Lula foi assassinado, naquele fatídico ano de 2018 que mergulhou o país no caos, fiquei me perguntando por suas emoções pessoais. Quando o maluco deu o tiro que atingiu o coração do mito o que você pensou? O ódio que ajudou a insuflar e que deixou a sociedade toda à beira da histeria chegou em algum momento à sua consciência?

Lamento muito o que aconteceu posteriormente com você. Uma intervenção militar que parecia impossível surgiu praticamente do nada três anos depois; o ano de 2021 é para mim a continuação da tragédia orquestrada sutilmente desde aqueles tempos em que você tinha tanto espaço na mídia.

Engraçado como a vida é. Você foi uma notoriedade por dois anos. Aparecia sempre na televisão e dava entrevistas e palestras como nunca. Assim que o impeachment de Dilma aconteceu você desapareceu e essa é outra pergunta. Você acreditava que as investigações monumentais que devassavam a história do país iriam continuar eternamente? Ainda hoje acho que você pensava assim. Todo mundo tem direito às suas ilusões. As minhas eram de que as conquistas sociais de um pálido governo tendente à esquerda seriam crescentes.

A repressão contra as minorias, a vociferação de setores fundamentalistas, a guerra civil mal disfarçada que hoje acontece não estava na minha imaginação.

Lamento muito os seus anos de prisão, e pode ter certeza de que fiquei feliz quando você conseguiu provar sua inocência. Não me dou muito bem com o ódio e sempre achei você um cidadão decente. Então quando começaram aquela história de grampo e de vazamento de suas conversas particulares fiquei muito indignado. Era irritante para mim a televisão sempre noticiando fatos não provados e tentar concentrar a polícia federal em investigar se aquela fazenda em Querência e aquela mansão em Búzios, onde você passava férias com sua família, eram na verdade suas. Isso me deixava particularmente zangado.

Sempre recebo notícias do Brasil e muitas vezes choro. Era impossível antecipar a sanha com que as nossas reservas petrolíferas foram praticamente extinguidas. Nesse momento de caos energético mundial, as grandes potências se beneficiaram bastante dos acordos de prospecção conseguidos nesse período.

A privatização feroz de nossa economia não nos legou o país modernizado que prometeram. Não termos educação superior gratuita, a precariedade da medicina familiar, a exorbitância dos preços dos planos de saúde, o avanço desregulado do agronegócio, os direitos dos trabalhadores, o sistema cada vez mais perverso de aposentadorias e pensões, o preço das moradias, o descontrole nas relações com os povos indígenas, revelam uma agenda para as futuras gerações que pessoalmente não sei como avaliar.

Estou chegando ao fim da vida, enxergando de perto o que é caos social, mas insistindo em esperar por um mundo melhor. Às vezes me dá um certo cansaço. Especialmente quando preciso admitir sobre a ambiguidade das motivações humanas e sobre a capacidade de manipulação ideológica de grupos inescrupulosos.

Talvez o único motivo dessa carta seja essa pergunta que tenho um pouco de timidez em fazer, um certo receio de parecer atrevido demais. Você não acha que tenham propositadamente tentado inflar o seu ego, de um homem de valor, de um cidadão de bem, apenas para instrumentalizar seus ideais e depois lhe descartar? Você consegue admitir que foi apenas uma carta do baralho do jogo de interesses de hábeis jogadores profissionais?

Murcia, 31 de março de 2038

2 comentários:

  1. Meu caro Marcos, sua imaginação é talento, além de ser um dom que você usa tão bem. Sei que preferia escrever na pauta de "Se o poeta é o que sonha o que vai ser real / bom sonhar coisas boas que o homem faz / e esperar pelos frutos no quintal". Mas, você, como Jeremias, precisa escrever "aos da cativos da Babilônia" como se lá estivesse. Oxalá eles possam ouvir sua profecia indesejada "antes que a definitiva noite caia em Latino América : el nombre del hombre és Pueblo". Um saudoso abraço.

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  2. Muito bom Marcos, excelente criatividade e reflexão. Parabéns amigo!

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