blodaresenhageral |
Prezado Senhor
Hoje, 31 de março de 2038 é uma data muito importante. Faz
vinte e dois anos de um dia que considero decisivo para a história do nosso
país. Naquela tarde eu estava nas ruas junto com muitos manifestantes lutando
contra o golpe que infelizmente aconteceu.
Talvez ainda se lembre de mim. Éramos vizinhos e às vezes
conversávamos cordialmente, apesar das divergências ideológicas, e isso pode
ter sido a minha vantagem. Não fui investigado nem grampeado naquela época.
Depois veio a nova ditadura militar e os dias se tornaram
sombrios para todo o mundo. Sei da sua prisão desses tempos, o que foi uma
grande surpresa para mim e, pode ter certeza lamentei bastante, mas ditadura é
ditadura. Eu mesmo, completei 86 anos de idade e estou morando fora do país,
não por minha vontade.
Essa carta pretende ser confidencial (espero que não haja
vazamentos) pois tenho algumas perguntas que me inquietam. Nunca duvidei da sua
integridade, apesar de todo mundo comentar sua ligação com o PSDB. Mas, porque
você não mandou investigar exatamente aqueles cujos crimes eram notórios e
escolheu a tortuosa via de ligar somente um grupo de um mesmo partido a tudo
que de ruim acontecia no país?
Quando Lula foi assassinado, naquele fatídico ano de 2018
que mergulhou o país no caos, fiquei me perguntando por suas emoções pessoais. Quando
o maluco deu o tiro que atingiu o coração do mito o que você pensou? O ódio que
ajudou a insuflar e que deixou a sociedade toda à beira da histeria chegou em algum
momento à sua consciência?
Lamento muito o que aconteceu posteriormente com você. Uma
intervenção militar que parecia impossível surgiu praticamente do nada três
anos depois; o ano de 2021 é para mim a continuação da tragédia orquestrada
sutilmente desde aqueles tempos em que você tinha tanto espaço na mídia.
Engraçado como a vida é. Você foi uma notoriedade por dois
anos. Aparecia sempre na televisão e dava entrevistas e palestras como nunca.
Assim que o impeachment de Dilma aconteceu você desapareceu e essa é outra
pergunta. Você acreditava que as investigações monumentais que devassavam a
história do país iriam continuar eternamente? Ainda hoje acho que você pensava
assim. Todo mundo tem direito às suas ilusões. As minhas eram de que as
conquistas sociais de um pálido governo tendente à esquerda seriam crescentes.
A repressão contra as minorias, a vociferação de setores
fundamentalistas, a guerra civil mal disfarçada que hoje acontece não estava na
minha imaginação.
Lamento muito os seus anos de prisão, e pode ter certeza de
que fiquei feliz quando você conseguiu provar sua inocência. Não me dou muito
bem com o ódio e sempre achei você um cidadão decente. Então quando começaram
aquela história de grampo e de vazamento de suas conversas particulares fiquei
muito indignado. Era irritante para mim a televisão sempre noticiando fatos não
provados e tentar concentrar a polícia federal em investigar se aquela fazenda
em Querência e aquela mansão em Búzios, onde você passava férias com sua
família, eram na verdade suas. Isso me deixava particularmente zangado.
Sempre recebo notícias do Brasil e muitas vezes choro. Era
impossível antecipar a sanha com que as nossas reservas petrolíferas foram
praticamente extinguidas. Nesse momento de caos energético mundial, as grandes
potências se beneficiaram bastante dos acordos de prospecção conseguidos nesse
período.
A privatização feroz de nossa economia não nos legou o país
modernizado que prometeram. Não termos educação superior gratuita, a
precariedade da medicina familiar, a exorbitância dos preços dos planos de saúde,
o avanço desregulado do agronegócio, os direitos dos trabalhadores, o sistema
cada vez mais perverso de aposentadorias e pensões, o preço das moradias, o
descontrole nas relações com os povos indígenas, revelam uma agenda para as
futuras gerações que pessoalmente não sei como avaliar.
Estou chegando ao fim da vida, enxergando de perto o que é
caos social, mas insistindo em esperar por um mundo melhor. Às vezes me dá um
certo cansaço. Especialmente quando preciso admitir sobre a ambiguidade das
motivações humanas e sobre a capacidade de manipulação ideológica de grupos
inescrupulosos.
Talvez o único motivo dessa carta seja essa pergunta que
tenho um pouco de timidez em fazer, um certo receio de parecer atrevido demais.
Você não acha que tenham propositadamente tentado inflar o seu ego, de um homem
de valor, de um cidadão de bem, apenas para instrumentalizar seus ideais e
depois lhe descartar? Você consegue admitir que foi apenas uma carta do baralho
do jogo de interesses de hábeis jogadores profissionais?
Meu caro Marcos, sua imaginação é talento, além de ser um dom que você usa tão bem. Sei que preferia escrever na pauta de "Se o poeta é o que sonha o que vai ser real / bom sonhar coisas boas que o homem faz / e esperar pelos frutos no quintal". Mas, você, como Jeremias, precisa escrever "aos da cativos da Babilônia" como se lá estivesse. Oxalá eles possam ouvir sua profecia indesejada "antes que a definitiva noite caia em Latino América : el nombre del hombre és Pueblo". Um saudoso abraço.
ResponderExcluirMuito bom Marcos, excelente criatividade e reflexão. Parabéns amigo!
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