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Marcos Monteiro
Amanhã Lula estará sendo julgado na
cidade de Porto Alegre, em segunda instância, julgamento cuja natureza política
implica automaticamente em vários julgamentos. O próprio judiciário estará
sendo julgado (na mesma medida em que o julgará), pela comunidade jurídica
nacional e internacional e especialmente pelo olhar do povo. Mas Lula reúne
simbolicamente toda a cultura e história de um povo, e o seu julgamento
incluirá a sua trajetória existencial, migrações no tempo e no espaço,
pertencentes especificamente ao tempo e ao espaço brasileiros.
Migrante nordestino e migrante
político, Lula pertence à categoria de povo brasileiro, de análise complexa,
mas que se estrutura como o resultado atual de um sistema colonial escravista
que acompanha a própria história do capitalismo. O negro africano pode ser
considerado a primeira mercadoria de circulação em massa produtora de uma
mais-valia desproporcional, e as relações escravagistas no Brasil ainda
imprimem marcas fortes na consciência econômica, social e cultural de nossa
vida. Essa nossa consciência histórico-cultural estará refletida também no
julgamento de amanhã.
No processo de urbanização
perverso, acelerado pelo projeto de industrialização a que fomos submetidos,
Lula representa o migrante que deu certo, o menino pobre de periferia que
ascendeu socialmente. Mas, se o seu sucesso reforça, por um lado, o mito do
individualismo, por outro ameaça esse mesmo mito por não admitir que isso possa
acontecer em uma trajetória de confrontação crítica e não de submissão
automática. Outros brasileiros, ricos políticos, ricos empresários, pagodeiros,
futebolistas, comunicadores, podem reivindicar para si o sucesso da ascensão
social, mas sempre se adequando às normas, nunca combatendo veementemente as
estruturas existentes. Mas alguém que migrou de classe, percorrendo e
administrando em sua história lutas populares, será sempre considerado uma
espécie de arrivista. No julgamento de Lula, amanhã, estarão sendo julgados os
processos de ascensão social, mas muito mais do que isso, de um modo
subjacente, um modelo de sociedade que necessita de ascensão.
Porque estarão sendo julgados o
socialismo e o comunismo de Lula, e o medo é o de sua imensa popularidade. O que
surpreende nesse pavor de um modelo de sociedade baseado numa distribuição de
poder mais horizontal é que a trajetória política de Lula mostra uma migração
de um ideário de esquerda, cada vez mais em direção ao centro, e muito próximo
da direita. Lula é cada vez menos socialista, mas ao administrar o capitalismo
neoliberal, com uma força de centro, e algum vestígio de anseios socialistas,
ameaça a estrutura piramidal. Mesmo sendo as grandes migrações de classes econômicas realizadas por seu governo, mantidas dentro da cultura capitalista, consumista,
narcisista e individualista, isso causa insegurança nas elites nacionais.
Portanto, Lula, acima de tudo,
estará sendo acusado de democracia. Mas democracia é a palavra que mascara uma
gestão cada vez mais distanciada do povo, cada vez mais próxima de uma
oligarquia de natureza plutocrática. Entretanto, foi exatamente com essa democracia que
Lula conseguiu sucesso junto a classes mais populares, estabelecendo uma
política de conciliação, em que os maiores sempre levam mais vantagem,
naturalmente. A democracia capitalista, a qual privilegia alguns e se submete
ao poder dos grandes financiadores, tornou-se modelo universal e a necessária
tensão entre os três poderes demonstrou solidez e fragilidades ao longo da
história. Essa democracia é a única que temos no Brasil e ainda assim é
incipiente e frágil. O modelo é importado, e amanhã estará sendo julgado em sua
aplicabilidade por aqui.
Lula, segundo as análises, sairá
vitorioso do julgamento, absolvido ou condenado. Absolvido, terá condições de
comandar novamente a política e a economia do país, no mesmo intuito de
conciliação que o consagrou. Se condenado, será o herói da luta contra os
oprimidos, sacrificado no altar dos opressores. Lula, sem dúvida, é o maior
herói já produzido pela esquerda nesse país, acima dos movimentos sociais e
acima dos partidos. Mas, desse modo, movimentos e partidos que precisam de
heróis são a dissonância de nossa esquerda que nunca conseguiu caminhar
coletivamente. Então, amanhã, também a nossa esquerda será julgada e, qualquer
que seja o resultado, será condenada pela história.
Seu ponto de vista merece todo o respeito, pela síntese histórica e ideológica contida neste julgamento. Mas carece de algo mais concreto: ao migrar para o centro, Lula usou das mesmas artimanhas que sempre criticou, ou seja, meteu a mão no dinheiro público para bancar, com as armas da direita, o sonho impossível da esquerda.
ResponderExcluirMuito boa reflexão! Super necessária para refletir a democracia no Brasil e tantas outras questões que estão imbricadas a nossa vida diária. Beijos Marcos. Sa
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