Marcos Monteiro
O corpo estava tão dolorido que parecia que eu tinha levado
uma grande surra, um linchamento, e eu sabia que eram as eleições. Até minha
dor de dente não parecia comum, como se tivessem jogado as urnas na minha
cabeça. Eu me tornara uma metáfora sangradeira ambulante e cheguei na casa de
Paranísio me arrastando e propondo que guardássemos o 03 de outubro de 2016,
como a data em que o socialismo foi destruído no Brasil. Paranísio me recebeu
com um sorriso de ironia e Valdelice com uma gargalhada galhofeira.
– Socialismo não se destrói nunca, pastor, e eleição nunca
teve a ver com socialismo.
O modo de olhar da Vila Maravila sempre me surpreendeu e
descobri que esses resultados já eram esperados por lá. A diminuição drástica
de prefeitos do PT, o minúsculo crescimento dos outros partidos de esquerda,
como o PSOL, a vitória esmagadora de candidatos de direita e a boa votação da
extrema direita, não parecia nenhuma novidade.
– Eleição e democracia não são coisas democráticas –
continuou Paranísio – e esse tipo de democracia não dá certo em lugar nenhum do
mundo, muito menos no Brasil.
Modelos de democracia é um tema que Valdelice gosta de
percorrer. No seu doutorado de sociologia estudou orçamentos participativos e
gestões democráticas e gosta de se debruçar sobre a história da democracia e
acompanhar experiências incipientes de democracia participativa, sempre com um
olhar crítico porque concorda com o marido, Paranísio, em que o sistema
capitalista não abre espaço nenhum para uma experiência realmente democrática.
– Democracia é mercadoria cara que o povo paga mas nunca
usa. É jogo de milionário, tipo campeonato espanhol ou liga dos campeões da
Europa, que só dá pra assistir pela televisão. Naquelas peladas só joga quem
tem muito dinheiro e vai pra o estádio quem pode comprar ingresso em euro.
Mesma coisa é câmara de deputado ou de vereador. Clube pra rico bater papo ou
xingar a mãe dos outros, de paletó e gravata.
Da subserviência da política diante da economia, a conversa
passou para a corrupção e para a questão Lula.
– Se Lula é corrupto ou virou corrupto eu não sei. Mas tenho
certeza de que nem é o maior corrupto do país, nem o chefe dos corruptos.
Porque corrupto mesmo é o sistema capitalista; e o sistema vai se destruir
algum dia porque quem corrompe se corrompe. O socialismo nunca será destruído
porque é a crítica e a resistência ao capitalismo. O sistema alimenta um ser
humano corrompível e corrompedor, mas também tem gente que não se corrompe. O
socialista de vergonha não se corrompe porque não se vende. E a pessoa pode
aprender a ser socialista de vergonha. Aqui na Vila tá crescendo uma meninada
que dá gosto ver, tudo socialista de vergonha. Até Rito, um moleque bom de
bola, que tinha tudo pra tá jogando futebol milionário pra milionário ver, joga
mesmo é aqui na Vila, depois de rejeitar tudo que é proposta de se tornar
milionário. Agora, pra falar a verdade, eu nem mais sei se Lula ainda é
socialista, porque milionário eu sei que tá. Pra mim, isso não quer dizer nada
e quer dizer muito. O pessoal quer prender Lula por que? Mais com medo de que
ele invente coisas tipo “Minha casa minha vida” ou “Bolsa família” ou mais
lugar para pobre na universidade do que por corrupção. Até porque a fila é grande
e Lula, se for corrupto, é da rabada. Lula tá milionário, porque foi presidente
e eu nunca soube de presidente que não seja ou não fique milionário. Você sabe,
pastor, quanto Lula ganha por palestra? Dava pra comprar umas duas fileiras de
casa aqui na Vila. Mas isso todo mundo faz e não dá pra acusar o Lula por isso.
Agora, fazer confusão por causa de um tríplex e de um sítio, que ninguém prova
que é dele, é deixar de fazer confusão com muita gente que todo mundo sabe que
tem mais e pode provar fácil.
As categorias de socialista que Paranísio usa são pitorescas
e “socialista de vergonha” é uma definição que ele atribui a si e a bem poucos.
Lembrei da pirâmide que se usa para representar o sistema de privilégios
disseminado pelo mundo todo, quando Valdelice me interpelou:
– Pirâmide? Que Pirâmide? Isso foi dos tempos do faraó...
Fiz uma pesquisa da distribuição da riqueza entre as pessoas no mundo de hoje e
o gráfico tá mais pra torre do que pra pirâmide. Uma haste que vai se afinando
e que é mais longa do que a torre Eiffel e uma base maior do que dez mil
Maracanã... Paranísio diz que política é coisa de milionário, pois bem,
televisão e comunicação é coisa de bilionário. Lá perto do topo da torre. Não
tem nada a ver com o que acontece cá por baixo. Por isso o desassossego. O que
é que Bill Gates e os irmãos Marinho têm a ver com chambaril e cuscuz com ovo?
E tem mais, eles nem sabem o que estão perdendo... Festa por aqui, com
churrasco, cozido, feijoada, cerveja e uma cachacinha caseira, rende muita alegria
e ainda sai barato... Porque tem três coisas que a gente sabe fazer bem: pirão,
foda e forró... No dia que a gente conseguir estraçalhar a torre o mundo vai
ficar muito melhor.
A linguagem escrachada de Valdelice já não consegue me
chocar, mas o seu raciocínio me levou por porta transversa a lembrar da Torre
de Babel na Bíblia. Uma torre que os seres humanos querem edificar cujo topo
chegue até o céu e cujo nome se torne perpétuo. O projeto parecia inofensivo,
mas Javé resolve atrapalhar e multiplica as línguas para que os seres humanos
não se entendam. Engraçado, demorei a notar que o plano de Javé foi que criou a
confusão sobre o harmonioso projeto. Uma torre é símbolo de opressão e uma
única linguagem é a linguagem do opressor. O desejável, então, não é a ordem
mas a desordem, não é a uniformidade mas a diversidade, não é o entendimento
mas o conflito, não é o pensamento único mas a multiplicidade de ideias e
ideais. Os mitos bíblicos sempre trazem belezas inesperadas, quando lidos com
outro olhar.
Essa democracia que temos e esses processos que alimentamos
estão ainda dentro da lógica da torre, do sistema capitalista opressor e
vertical. O socialismo é esse espaço de multiplicação de linguagens e discursos
fora do âmbito verticalista do capital. Diversidade de gênero, diversidade
étnica, diversidade religiosa, diversidade cultural, podem ser incentivadas e
multiplicadas pela base, como possibilidade de estraçalhamento da torre e
reconstrução de uma sociedade mais horizontal, próxima do socialismo de vergonha
que Paranísio tanto defende. Esse espírito socialista é o gen que torna a
humanidade mais humana. Precisa ser cultivado cada vez mais, mas jamais será
destruído por qualquer resultado eleitoral. Podem perguntar na Vila Maravila.
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