sábado, 4 de setembro de 2010

Quase


Eu quase aprendi a jogar futebol, quando garoto, mas uma unha encravada impediu. A partir daí outras quase-unhas encravaram-se no meu quase-caminho, proibindo-me as últimas quase-passadas para um quase-qualquer objetivo final. Tornei-me um quase-frustrado colecionador de quases.

E quase obcecadamente, quase obstinadamente, lancei-me quase inteiramente ao aprendizado de ser quase feliz, o que posso dizer, com moderado orgulho, que é uma quase-humildade, que quase consegui.

Diante do desafio do ser-mais, de Paulo Freire, através do ser inconcluso, posso assegurar que estou quase chegando lá e que já me posso afirmar ser-quase-inconcluso. E perante o existencialismo humanista de Sartre, eu sempre sou quase o que não sou e quase não sou o que sou, remetendo-me inevitavelmente a um ser-quase-em-si que se propõe ser-quase-para-si. Em outras palavras, na minha história particular, a existência quase precede a essência.

Quase disciplinadamente, estou quase aprendendo a escrever, de quase insistir na busca da idéia ou da palavra quase perfeita. Quase sou capaz de afirmar que a vida é quase assim: essa quase infinita sucessão de “quases”, essa quase distensão do desejo, esse quase espreguiçar-se sobre um tempo quase concreto.

Nessa sucessão, coleciono reverentemente alguns quases especiais. Eu quase consegui balbuciar algumas palavras para a primeira menina pela qual me apaixonei, com quase dez anos de idade, ou quase adolescente. Mais tarde, quase acertei na loteria esportiva (e olhe que quase não jogava) e ainda mais tarde, quase ganhei para o campeão mundial de damas, o que considero quase inesquecível. E quase não lembrava mais: eu quase vi Pelé jogar pessoalmente. O estádio estava quase superlotado e eu só consegui lugar na geral, quase atrás do gol. E tenho quase certeza de que aquele vulto que vi, ou quase vi, cabeceando uma bola com elegância seria o próprio Pelé (ou então Coutinho, quase a mesma coisa).

Mas alguns quases podem ser considerados quase tenebrosos. Quase fui atropelado por duas vezes. Muito criança, antes dos três anos de idade, e muito adulto, depois dos cinqüenta. Quase enveredei pelo mundo das drogas e quase não conseguia parar de beber na adolescência. Quase não freqüentava as aulas do colégio, nem da faculdade, e quase não queria nada com a vida.

Alguns quases na minha vida foram sutis: eu quase desisti de desistir. Outros foram encantadores: eu quase me apaixonei por uma bela mulher negra. Outros sublimes: eu quase me tornei quase infinito contemplando alguns pôr-de-sol, esses momentos quase indefinidos de quase-luz e quase-sombra, de quase-dia e quase-noite, essas parábolas diárias do quase.

Estou quase terminando, mas quase me lembrando que, mesmo perante a quase possibilidade de um fracasso total, colhi alguns sucessos, o que me deixa em uma situação quase esdrúxula. Eu sou quase um sucesso ou quase um fracasso? Ou quase isso ou quase aquilo é quase a mesma coisa?

De todo o modo, o meu epitáfio já está quase definido: ou a própria bela e ambígua palavra “Quase” ou a igualmente bela e igualmente ambígua quase frase: “Ele quase...”

2 comentários:

  1. Eita Marcos... esse seu dom de quaser fazer as pessoas morrerem de rir e quase fazê-las chorar com algumas coisas suas que talvez sejam suas poucas não-quase coisas: seu exemplo e sua escrita. Pra mim são um legado pronto exatamente por sua incompletude. Pra mim, entre outras tantas quase-coisas, você é quase sempre essa substituição de pontos finais por reticências, nos textos e na vida...

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  2. Quase gostei do post (rs,rs,rs). A incompletude dos "quases" é o que nos faz desejantes de prosseguir tentando,

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