NA GALÁXIA DE GUTEMBERG
Marcos Monteiro
Desde a invenção da imprensa, os tipos móveis aumentaram a
nossa capacidade de comunicação, diminuíram a necessidade de locomoção e a vida
passou a ser escrita. Somos personagens de livros que não sabemos quem é o
autor e literatura é um tipo de escrita que se resolve por si. Quando um texto
nos escreve, permite a ilusão de que somos autores e nos guia em uma busca por
nós mesmos. Conhecemos bem o último capítulo do nosso livro e a morte nos dirá
se vivemos em comédia ou em tragédia. Talvez alguém imagine que leu o nosso
livro e faça discursos sobre o que desconhece, em nome de uma familiaridade,
por não saber que proximidade é antônimo de conhecimento.
A história do Brasil tem sido escrita e reescrita e a última
revisão é uma comédia cujo final tem chances de não ser trágico porque os
redatores econômicos, políticos e religiosos estão tentando multiplicar textos
que façam a história retomar caminhos mais saudáveis.
A idade da terra chamada Brasil se perde nas cavernas da
pré-história. Mas a história começa com a carta de Pero Vaz de Caminha ao rei
Dom Manuel. O Tratado de Tordesilhas, mediado pelo papa, é um documento que
legitima a posse de metade do mundo desconhecido para Portugal. A outra metade
pertence à Espanha. Talvez possamos considerar essa a primeira grilagem da
história, disfarçada nos livros, a primeira utilização da invenção de Gutemberg
em larga escala. Na pré-história do Brasil, a terra pertencia a sociedades
tribais, com espécimes de hábitos estranhos, como tomar banho todos os dias,
andarem nus e viverem de comidas não industrializadas. Suas guerras matavam
menos do que as guerras europeias e suas armas eram tão antigas que
demonstravam a ignorância de seus guerreiros. Viviam da caça e da pesca e em
nenhuma de suas muitas línguas existia a expressão idiomática “desequilíbrio
ecológico”. Demonstravam respeito excessivo para os seus anciãos e até os
antepassados participavam de seu convívio, Os que haviam passado para o outro
lado davam sugestões nas reuniões do conselho, recebiam o alimento diário com
gratidão e sugeriam estratégias de combates a invasores. Os portugueses vieram
trazer a civilização para que a barbárie fosse erradicada e trouxeram colonos
para ensinar os nativos, pelo exemplo ou pela força, a vestirem roupas, a atualizarem o cardápio e
principalmente a simplificar a religião. Diante da abundância de deuses
tribais, o cristianismo era uma religião de um deus só: O Pai, o Filho, o
Espírito Santo, a Virgem Maria e o santo de cada dia, capazes de curar todo
tipo de doença e de garantir um lugar no purgatório, porque o céu estava todo
ocupado com os habitantes de além-mar. Para escapar do inferno bastava se
batizar, assistir missa, confessar pecado e pagar a penitência prescrita.
A carta de Pero Vaz de Caminha pode ser considerada o
documento que inaugura o programa de colonização, o qual ainda não conseguiu
ser aplicado totalmente, escrito em estilo elegante, com os elogios de praxe a
El-Rei e com o pedido de emprego para um amigo. Talvez isso explique porque o
programa de colonização ainda se arrasta. Todo mundo sabe que os amigos são
ótimos para garantir que as coisas não aconteçam. Os colonizadores
transformaram Pindorama em um novo mundo, trazendo para a nova Terra de Santa Cruz
roupa, queijo, gripe e gonorreia. Cartas e bilhetes ainda são os documentos
mais importantes nessa terra em que se plantando tudo dá. Mais importantes do
que livros. Os dois principais livros dos novos tempos, a Bíblia e a
Constituição, de vez em quando são rasgados por bilhetes imperativos ou por
cartas amigáveis.
Não é a primeira vez que experimentamos tempos difíceis, mas
temos de admitir que a tentativa de rasgar Bíblia e Constituição tem ganhado
muita força nesse novo milênio. A democracia burguesa e liberal, com todas as
suas contradições, pode ser vista nesses momentos como uma das importações
inevitáveis. Nunca tivemos muito tempo de experimentar qualquer tipo de
democracia, mas depois de tanto tumulto governamental, a maioria do nosso povo
aceita uma democracia liberal insuficiente, mesmo que nossas instituições sejam
fracas. A frente ampla que reúne dinossauros e monstros marinhos é o abrigo de
uma esperança que tenta saltitar em um terreno cheio de armadilhas. Nesse
espaço, os discursos que defendem os procedimentos judiciais, as negociações e
o respeito à nossa carta magna fortalecem a resistência. No espaço evangélico,
a tentativa de se rasgar a Bíblia tem sido feita até com versículos bíblicos,
mas muitos estamos resistindo. Libertar a Bíblia de uma hermenêutica
inconsequente e de um uso antidemocrático é tarefa nossa.
Recife, 06 de fevereiro de 2023.