terça-feira, 13 de novembro de 2018

DA BANALIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

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Marcos Monteiro

Era a mesma padaria de todo dia, o mesmo caminho com Seu Jorge, em seus oitenta e seis anos, mas a irritação era nova. Um dia depois de uma eleição esquisita, na qual as razões se portaram de modo estranho, o encontro de sempre com o sorriso de Melissa e do seu marido Antônio, não conseguia desmanchar meu emburramento. E perdi um pouco do resto de controle quando ela perguntou se eu votei consciente e votar consciente, para eles, era eleger Bolsonaro. São pequenos comerciantes, um empreendimento desafiador, e evangélicos, e sei que as igrejas são espaços complexos de empoderamento para tantas direções.

Mas a ideia do “voto consciente” mexeu comigo. Pensei, a partir de meus quase setenta anos, na tentativa de aprendizado de exercer uma consciência política e evangélica, através da luta a favor dos grupos mais vulneráveis da sociedade, mulheres, negros, homossexuais, crianças, população de rua, sem terras, sem tetos e trabalhadoras cada vez mais sem direitos, e não pude evitar de pensar que entre todas as banalizações dessa eleição, a banalização da consciência talvez seja a mais dolorosa. Exercendo tudo que aprendi sobre consciência, votei em Boulos no primeiro turno, e em Haddad, no segundo, e voto diariamente em minha consciência cidadã, sem medo e sem ódio.

Há ameaças expressas em curso que podem atingir todas amigas e amigos que apoio e uma delas tem um imenso valor simbólico. Paulo Freire pode deixar de ser o patrono da educação brasileira, até porque ele foi um fracasso como educador, é o que afirmam de modo descabido. Para Freire, a conscientização se constitui tarefa educativa permanente, e migrar de uma consciência semi-transitiva para uma consciência crítica é se tornar mais e mais pessoa humana. Pode-se atribuir o voto evangélico a uma consciência mítica e mística, de natureza ingênua, mas começo a pensar na existência da categoria de uma consciência banal, a serviço de todo o tipo de manipulação.

A banalização se afigura como um processo contínuo, atingindo pessoas, valores e instituições, e essa eleição talvez passe para a história como o mais banal dos processos eleitorais. O candidato eleito banalizou o discurso, de um modo que as famosas escolas da Grécia clássica, se sentiriam afrontadas. Jaeger considerava Platão e Isócrates rivais em metodologia e objetivos, mas respeitáveis em consistência. Ameaças descontroladas, promessas descabidas, piadas grosseiras e ofensivas, misóginas, racistas, homofóbicas, significaram a banalização da retórica em grau inimaginável.

Li programas banais, projetos banais, argumentos banais, e assisti a debates banais e entrevistas banais. No balcão de objetos banais, a justiça, a economia, a cultura, a política, a democracia e o evangelho, foram oferecidos em rótulos bem minúsculos e a preço promocional. Lembrei que banalidade é palavra que na Idade Média significava o preço que o servo precisava pagar ao senhor feudal para o uso de um bem ou um instrumento necessário, forno, moinho, lagar, algo que não possuía. A banalidade, portanto, em sua origem semântica, é o preço que os despossuídos pagam aos proprietários do planeta. Portanto, toda banalidade é perigosa.

Hanna Arendt descrevendo Eichmann, o famoso nazista responsabilizado judicialmente pelo extermínio de seis milhões de judeus, descreve o julgamento de uma pessoa de meia idade, com óculos, quase calvo, com a aparência da pessoa comum que era. Uma pessoa banal com uma consciência ética banal. Tinha exercido a virtude da obediência e sabia que seria condenado à morte e esperava somente que não fosse considerado um monstro, porque no cotidiano era bom pai e bom marido e nunca odiara nenhum judeu, mas obedeceria o Füherer sempre. Se a sua obediência era a banalização da ética e do imperativo categórico kantiano, a lição, segundo Arendt, que o julgamento traz é a da banalidade do mal, o que causa obviamente mais insegurança à vida social.

A banalização da consciência é projeto necessário à banalização da vida e à manutenção da desigualdade estrutural. O período eleitoral tem se constituído em tempo de maior banalização da nossa democracia e as igrejas têm se comportado como abençoadoras e aceleradoras de todo tipo de banalização. Mas a luta pela conscientização e pela democratização de nossas instituições não se resume às eleições. No âmbito da sociedade como um todo, esse projeto é de uma educação popular continuada; no âmbito da igreja, é um projeto de evangelização. Esses são os tempos em que vivemos, momento histórico em que as igrejas são os espaços que mais precisam de evangelho.

Maceió, 13 de novembro de 2018.



3 comentários:

  1. "Momento histórico em que as Igrejas são os espaços que mais precisam do evangelho". Profético!.

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  2. A questão é se vamos conseguir reativar o discurso sério novamente, especialmente no meio evangélico apóstata.

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  3. Acho que a pergunta a ser feita é: Quando, em que tempo a igreja foi diferente disse que ela é hoje? A igreja como instituição sempre foi o lugar da acomodação ao estabilishmente, e do conformismo. Isso quando não foi a protagonista histórica de atrocidades.

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