Rapaz era um centroavante comum no incomum time do Maravila F.C., aquele mítico melhor time do mundo, onde Biu do Efeito e Roído se destacavam sempre. Driblava normalmente, chutava com os dois pés, cabeceava bem, sabia dar passes e fazer tabelas, como todo jogador de futebol deve fazer; o diferencial que o tornava titular naquele imbatível ataque é que corria muito e sua velocidade tornou-se também provérbio na Vila Maravila: “hoje soprou um vento de Rapaz”, ou “correu tanto quanto Rapaz”, alusão à anormal velocidade do normal centroavante.
Então, na sua história, gols comuns, chutes precisos ou cabeçadas perfeitas, mas também gols inesquecíveis e jogadas ensaiadas para aproveitar a sua velocidade. Inúmeras foram as partidas em que antes do primeiro minuto fizera um gol e se cronometraram o gol mais rápido do mundo em sete segundos, o pessoal da Vila, o povo antigo, garante que é porque não cronometraram os seus gols, mais velozes ainda. Uma das jogadas prediletas do time era lançar no vazio para Rapaz correr e ele alcançava a bola sempre, mesmo que estivesse bem distante, para desespero de zagueiros adversários.
Mas Rapaz tinha um sonho que perseguia como uma obsessão. Queria alguma vez na vida, cobrar o escanteio e correr para cabecear a bola para o gol, desmoralizando a famosa piada. Tentava em treino, tentava em jogo e tentava sozinho, expondo-se à chacota de companheiros e de oponentes. Podia ser qualquer jogo, mas fazia questão de cobrar o escanteio e tentar de novo a cabeçada, superando limites impossíveis de velocidade, como quem aposta corrida com o vento.
Biu do Efeito observava divertido e um dia, meio de caçoada meio de impaciência, explicou que não era questão de velocidade, mas de jeito e foi mostrar como se fazia.
Nesse dia, nos garante Seu Madeira, mais uma vez Biu do Efeito embasbacou a torcida com a sua impressionante habilidade. Foi para o córner e deu um chutão para cima com toda a força que a bola quase chega na esquina contrária do campo. Enquanto isso, foi correndo sem muita pressa para a grande área e aconteceu o imprevisto para a massa ignorante, mas já antevisto pelo grande Biu do Efeito. A bola começou a voltar em voleios diferentes, voltas e mais voltas, até chegar exatamente onde Biu do Efeito havia se posicionado e este só teve o trabalho de cabecear levemente para fora do alcance do hipnotizado goleiro que via mas não acreditava. Mais um gol para a sua coleção.
A reação do Rapaz foi inexplicável, mas talvez nem tanto. Ele teve um ataque histérico: primeiro ficou batendo com a cabeça no chão, depois correu se contorcendo de raiva e urrando para cima de Biu do Efeito que, se não fosse a força descomunal protetora de Biuzão, teria desenroscado todos os efeitos acumulados gloriosamente nas partidas de futebol e teria sido transformado num pião pela ventania descontrolada do Rapaz.
Este passou a falar sozinho, desenvolveu uns tiques estranhos e deixou de jogar, até que Aroeira, que técnico esse Aroeira, sem saber mais o que fazer resolveu ajudar o rapaz a correr ainda mais; quem sabe o seu objetivo seria alcançável.
E dizem que assim aconteceu. Aroeira inventou uns treinamentos de corrida que o pessoal ainda comenta. Tinha dias que soltava cachorro brabo de surpresa para cima do centroavante, que tinha mesmo era de correr. Outras vezes soltava boato de catástrofe, inundação ou incêndio, e botava o Rapaz pra correr. O método mais cruel foi quando contratou um pistoleiro famoso e certeiro para sair correndo disparando tiro para o desesperado jogador.
Bem, o certo é que deu certo. Um belo dia, Rapaz voltou a jogar, muito aplaudido pela torcida saudosa de sua velocidade, e estava mais rápido do que nunca. Foi quando aconteceu o escanteio, que escanteio sempre acontece, e os jogadores todos pararam em um suspense daqueles. Dizem que não se ouvia nem a respiração da imensa torcida, somente o assovio zombeteiro do vento que não se sabia prestes a ser desmoralizado.
O Rapaz cobrou o escanteio a meia força e desabalou como quem aposta corrida com o vento; e no momento preciso cabeceou o próprio cruzamento e fez o gol.
Alegria do Maravila, mas balbúrdia total do Ipiranga que requeria a anulação do gol. Mas o juiz, Epifânio de Araújo Brito, também personagem folclórico das memórias da Vila, sabia que no campo estava acima de qualquer lei. Foi expulsando um a um os jogadores irritados, expulsou técnico, massagista, presidente do clube que reclamavam que a regra era clara: não podia o mesmo jogador dar dois toques na bola, cobrado o escanteio.
Epifânio, firme e impávido, mostrou cartão vermelho para todo o mundo, validou o gol e encerrou a partida, discursando solenemente que havia momentos em que “as surpresas, a beleza e a história eram mais claras do que qualquer regra”.
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