Na mesma primeira página do Diário de Pernambuco de 14.02.1984, mas reveladoramente em espaços distintos e distantes entre si, noticiaram-se esses dois nascimentos:
Sertaneja dá à luz trigêmeos
A camponesa Maria José de Lima, que já tem sete filhos e cujo marido trabalha numa frente de emergência no Sertão de Pernambuco, deu à luz trigêmeos, anteontem, no Hospital Geral Pereira da Silva, de Taquaritinga do Norte, e após o parto exclamou, desolada: “Meu Deus do céu, pra que três meninos, se já tenho tantos.” O parto foi normal e as crianças – um menino e duas meninas – estão passando bem.
Outro herdeiro
A princesa Diana, mulher do príncipe Charles, está grávida e deve dar à luz um segundo bebê, em setembro, anunciou, ontem, o Palácio de Buckingham. O anúncio pôs fim a meses de especulações sobre se Diana estaria grávida, à espera de outro herdeiro para o trono.
O príncipe nascerá ainda, mas porque príncipe já é notícia. Aliás, será assim o tempo todo: chegará sempre depois de sua fama.
Os pequenos sertanejos chegam aos jornais não porque são nobres, mas porque pobres conseguiram nascer. Romperam o cinturão de subnutrição, os índices de mortalidade, a precariedade das condições sanitárias, e nasceram. Os três. Juntos na mesma aventura.
Quando o príncipe nascer, estarão os quatro diante do mesmo Deus e imersos na mesma história, mas terão deuses diferentes e histórias desiguais.
A história dos trigêmeos será seca e o seu deus, vingativo, insensível e fetichista; aprenderão a lutar e a ter medo dos espíritos, e ruminarão em silêncio as suas amarguras.
O príncipe terá um deus vestido luxuosamente e sempre pronto a multiplicar-lhe o muito; aprenderá a andar aprumado e a olhar o mundo de cima do palácio.
Os trigêmeos têm sete irmãos morando num casebre; no imenso palácio, serão dois principezinhos. É pouco príncipe para muito espaço, é muito sertanejo para pouco chão.
Nascimento de príncipe: um choro de menino cercado de sorrisos. Nascimento no sertão: três novos tenores para o coro de lágrimas.
Daqui a vinte anos, os três, e daqui a trinta e cinco, o príncipe, irão casar. O príncipe escolherá cuidadosamente a moça e planejadamente terá dois filhos para a preservação da estirpe.
Os três sertanejos terão dez filhos cada, dez filhos inesperados. Dentro de noventa anos, três mil sertanejos disputarão o mesmo hectare seco, a mesma pedra infrutífera.
Nasceram em dias diferentes mas morrerão no mesmo dia. Os sertanejos de fome e o príncipe de excessos. Em luxuosa mortalha e esmerado caixão, entrará o príncipe em seu mausoléu, televisionado e acompanhado por numeroso séqüito.
Em suas roupas maltrapilhas, os sertanejos serão enterrados sem caixão, em covas rasas por suas famílias e logo esquecidos.
Então, estarão todos quatro nus diante de Deus.
(Esse nosso texto tão antigo está em um livro coletivo recente publicado pela Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE: “A palavra de Deus na palavra dos pobres”, organizado pelos pastores Benedito Bezerra e Paulo César Pereira. 32 autores e autoras, de diversas experiências sociais produziram ao longo de dois anos reflexões semanais diversas, experiência comunitária que traduz essa experiência de Igreja de periferia que vivemos juntos por tanto tempo).
Fiz uma viagem, como estarão agora os quatro meninos. Do principe temos sempre notícias na mídia, mas os sertanejos. Se seguiram as estatísticas, um deles morreu na infancia, provavelmente de uma pneumonia, se escapou, entrou para o tráfico na adolescencia e morreu de morte violenta. Os outros dois trabalham em sub empregos ou no trabalho informal, já têm filhos. Pessimista, eu ?
ResponderExcluirEita, Tucha, se depender de sua imaginação, qualquer dia vou ser assaltado à mão armada pelas minhas crônicas... Merecerei... Um grande abraço...
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