sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O IMPEACHMENT DE SEU JORGE E DE DONA DILMA



Marcos Monteiro


Seu Jorge liga a televisão e franze o cenho meio assim indignado com a presidenta Dilma. Não lhe interessam as questões linguísticas, “presidenta” ou “presidente”, nem mesmo o discurso, o qual nem ouve, mas está descontente com a vida e a culpa é do governo. Aliás, a culpa sempre foi do governo, só mudavam os nomes próprios, e a culpa ainda será do próximo governo, quando mudarmos de presidente. Mudar ou não mudar de presidente agora é a questão pautada pelos políticos, alimentada pela mídia e cozinhada na insatisfação popular, mas para ele o problema é outro. Seu Jorge é aposentado pela Rede Ferroviária Nacional e a Rede Ferroviária não existe mais e a aposentadoria dele é menor do que deveria, como a de milhões de brasileiros, e o salário do seu filho é menor do que deveria, como o salário de milhões de brasileiros e o salário de sua filha, bem, sua filha está desempregada e a culpa é do governo.

Eu me considero uma espécie de animal pré-histórico, um socialista (alguém já ouviu esse nome?) que também acha que a culpa da desigualdade salarial e da desigualdade social é do governo e de todos os governos. Mais ainda, tenho a mania de pensar totalidades e de considerar que a furiosa busca pelo equilíbrio das contas dos países hegemônicos desequilibram as contas de países emergentes ou de países dependentes e que o sorriso feliz do deus grego Barack Obahma (enfim, um deus negro) é diretamente proporcional à visível tensão dos dirigentes de países metidos a titãs como a China, a Rússia, a Índia e o Brasil, que pareciam ameaçar hegemonias e atrapalhar as refeições banhadas a ambrósia e néctar dos habitantes desse Olimpo em que não pode haver lugar para todo o mundo.

Fico dividido entre acompanhar a crise nacional e a crise de Seu Jorge, enquanto escrevo o meu texto. Seu Jorge é um aposentado que não para de trabalhar, de varrer, de limpar a casa e de estranhar esse genro esquisito que nunca trabalha, só vive no computador, incapaz de perceber a diferença entre trabalho intelectual e trabalho braçal, essa vida privilegiada que sei que vivo e que consiste em ler, escrever e conversar. Chamar isso de trabalho, eu sei que é ofender a classe trabalhadora desse país, por isso, de vez em quando tenho de parar para lavar pratos, cozinhar ou literalmente carregar pedras de uma casa em reforma. A situação está ruim para todo o mundo, mas talvez Seu Jorge é que tenha razão sobre o meu trabalho e ache muito natural eu ganhar pouco. Mas em uma coisa concordamos: a culpa é do governo.

O governo gasta mais do que ganha e precisa diminuir despesas imediatamente. Faz isso porque os deuses do Olimpo, os países hegemônicos, o capital financeiro, os parlamentares oposicionistas e a mídia pressionam e se valem da insatisfação popular para aumentar a pressão. Então o governo pega a tesoura e começa a cortar exatamente os gastos com o bem estar da população, os gastos com saúde, educação e programas sociais. Não adianta alguém dizer que o governo gasta muito mais exatamente financiando os países hegemônicos, o capital financeiro, a classe política e a rede de comunicações. Afinal, a ideia dos cortes foram deles e não se pode penalizar quem aponta soluções. Então, não pode haver mais nenhuma dúvida e seu Jorge tem razão: a culpa é do governo.

Quando me comparo a um animal pré-histórico, claro que penso em um dinossauro, enorme e predador tiranossauro rex, mas empalhado. Os socialistas já ameaçamos o planeta, mas fomos todos domesticados e agora nos tornamos figuras exóticas exibidas em museus públicos, até porque ninguém pagaria para nos visitar. Lembro disso porque a presidenta Dilma já foi a companheira Dilma, ou a guerrilheira Dilma, socialista que precisou ser torturada por acreditar em liberdades democráticas e em lutar por mundos melhores. Agora recebe comando de domadores e se submete a piruetas ensaiadas. Admirável apenas o fato de que hoje sofre torturas diferentes e as enfrenta com a face impávida de sempre, mantendo a teimosia de andar na corda bamba.

Mas aí volta a questão do momento, mudar ou não mudar de presidente, ou “impeachment já”. Para Seu Jorge tudo bem ou tanto faz, a culpa sempre será do governo. Para mim, em qualquer modelo capitalista não há salvação nem para a democracia, nem para o governo nem para o povo. E não adianta o argumento da corrupção porque a corrupção é o próprio sistema e se pensarmos na totalidade, todas as coisas se encontram interligadas de tal modo que a concentração de renda significa concentração de poder e a concentração de poder usurpação do poder. Uma CPI da CPI, por exemplo, quebra do sigilo bancário dos condutores de investigações éticas, revelariam provavelmente coisas maiores do que as contas suíças de Eduardo Cunha. Não dá para não lembrar da piadinha cínica do saudoso Millôr Fernandes. Um deputado respondendo a outro: "Claro que participo dessa campanha nacional contra a corrupção, mas preciso saber primeiro quanto levo”.

Pois bem, sou contra o impeachment por diversas razões, inclusive por não gostar de participar de uma chanchada tipo non-sense. Dilma está sendo acusada de fazer o que a própria oposição queria que fizesse ou acusada de fazer o que todo o mundo faz. No caso dela sem provas. Gostaria de tecer críticas relevantes ao governo Dilma, mas as minhas críticas não interessam ao movimento oposicionista. Creio que no governo Lula-Dilma o movimento popular e a sociedade civil tiveram a sua espinha dorsal ameaçada de ruptura, o agronegócio suplantou a agricultura familiar a níveis inimagináveis e o projeto desenvolvimentista privilegiou o latifúndio, o capital internacional e a grande indústria. Redes de cooperação e resistência sofreram um processo de desaceleração lastimável. Por outro lado, o Brasil hoje é um canteiro de obras embargadas por interesses políticos. Quando os embargos acabarem (e sempre acabam) a retomada do crescimento pode favorecer a classe trabalhadora. Para mim, isso não é o suficiente mas é o melhor que o país já teve nesses últimos cinquenta anos.

Admiro Dilma mas Seu Jorge é o meu herói. Desses desconhecidos heróis brasileiros que vivem um cotidiano chamado de despolitizado, mas que percebem no próprio corpo que a culpa é do governo. Com salário muito menor do que o de qualquer político, Seu Jorge está reformando a sua casa e está ficando muito bonita. Com a ajuda da filha providenciou casa própria, ao longo de seus oitenta e quatro anos de vida, para cinco filhos, comprando terreno, carregando pedras e pegando na colher de pedreiro. Sou contra o impeachment de Dilma porque, mesmo sem o reconhecimento dele, ela fez mais por seu Jorge do que muitos outros arrogantes presidentes (mesmo eu achando que ainda é muito pouco). Com o impeachment de Dilma corre o risco de haver o impeachment de Seu Jorge, ou o impeachment do povo brasileiro.






Um comentário:

  1. gostei do seu Jorge, mas gostei mais de saber que vc é contra o impeachment de Dilma ! xerus.

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