sábado, 17 de outubro de 2015

“EU FICO COM A PUREZA DAS RESPOSTAS DAS CRIANÇAS”: HOMOSSEXUALIDADE E FAMÍLIA


 
bonde
Marcos Monteiro*

Considero a história a seguir uma das mais belas que coleciono e que ouvi das pessoas diretamente envolvidas. Como não pedi devidas autorizações vou embaralhar nomes e lugares para não ultrapassar limites de escritor e de amigo. Certamente, pessoas vão se reconhecer e vão criar compreensões pertinentes e impertinentes diante da narrativa.

Em um acampamento de crianças de uma igreja batista o tema condutor era o livro de Apocalipse e a tarefa das crianças era  recriar a Nova Jerusalém, a cidade ideal que desce dos céus para a terra. O que entra e o que não entra, quem fica de dentro e quem fica de fora da cidade era o exercício a que se aplicaram com entusiasmo. Em um dado momento, uma das crianças pega um bonequinho e bota no lixo, afirmando que homossexuais não poderiam fazer parte da cidade de Deus. Então, Claudinho, imediatamente retira o bonequinho do lixo indignado e afirma:

– “Não. Meus pais entram sim na cidade. Amo muito meus pais e eles são pessoas do bem”.

A reação das outras crianças foi a esperada. Bem, esperada somente de crianças. Concordaram imediatamente que os dois pais gays deviam fazer parte da cidade porque acima de tudo eram os pais de Claudinho e crianças são aquele tipo de pessoa que ainda acha que as relações afetivas estão acima de qualquer outra coisa e que as pessoas queridas não carregam rótulos, têm nomes próprios. No olhar ainda puro das crianças, Jean e Samuel vão fazer parte da cidade santa.

A Nova Jerusalém é a maquete cristã do novo mundo. Surpreendentemente, os cristãos são atualmente talvez o grupo mais empenhado em colocar na lata de lixo tanto os homossexuais quanto as famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo e a nossa esperança é que as igrejas aprendam com Claudinho e as outras crianças a mudar os critérios de inclusão de pessoas na nova sociedade. Revisar os manuais substituindo rótulos de diversas naturezas por valores éticos como justiça, verdade e amor não será tarefa fácil para quem acumulou ao longo do tempo montanhas de argumentos para justificar preconceitos e discriminações especialmente de ordem sexual.

Na televisão, pastores evangélicos conclamam os fiéis a defenderem a família e paradoxalmente atacam as famílias constituídas por homossexuais. Neste mês de outubro, o Sínodo do Vaticano se debruça sobre uma pastoral da família e se afirma em algum momento o acolhimento amoroso no seio familiar das pessoas com “tendência homossexual” declara veementemente: «Não existe fundamento algum para equiparar ou estabelecer analogias, mesmo remotas, entre as uniões homossexuais e o plano de Deus sobre o matrimônio e a família». Portanto, evangélicos e católicos colocam as famílias de homossexuais na lata de lixo, e isso em nome de Deus e da família.

Ao se excluir do conceito de família um número considerável de pessoas que vivem a sua experiência familiar de modo diferente da normativa está se exercendo uma violência de natureza simbólica que reforça e induz violências físicas. Interditando-se o corpo, dogmaticamente se abandona esse mesmo corpo e se abre o caminho para o cerceamento do prazer e para a redução da vida. O momento de se conceituar tanto pode servir a um respeito dinâmico à história e à existência quanto a uma interrupção brutal da exuberância e da criatividade da vida. Reduzir o conceito de família sem respeitar a história de como as pessoas vêm se organizando familiarmente restringe o campo de direitos que sustenta a vida e que transforma o mundo em um melhor lugar de se viver.

Estive por esses dias examinando abordagens sobre família de natureza sociológica, psicológica, antropológica e teológica. Todas têm uma tendência preponderante ao silêncio sobre a diversidade de possibilidades de organização familiar e ignoram as formações de famílias homossexuais com algumas poucas exceções. Por isso, não pude evitar a lembrança da música de Gonzaguinha que nos conclama a “viver e não ter a vergonha de ser feliz” e ficar com a pureza da resposta das crianças: “É a vida e é bonita e é bonita”. E gostei de alguma coisa que o papa Francisco disse, embora sem nenhuma esperança de grandes mudanças dos dogmas cristãos.

Esse papa latino-americano de grande coração e grande coragem pessoal disse o seguinte: "Se olharmos para as crianças através dos olhos de Jesus, podemos entender como, defendendo a família, protegemos a humanidade". Então, gostaria de entrar em diálogo com ele e afirmar o seguinte: “Se olharmos para Jesus e para a família com os olhos das crianças podemos entender melhor o que significa ser cristão e ser humano”. Para boa parte da sociedade e para a maior parte da igreja cristã os homossexuais não deveriam ter direitos, ou então ser considerados cristãos e pessoas de segunda categoria, dignos de compaixão e até de cura. E eu fico com a pureza do olhar de Claudinho, orgulhoso de seus dois pais, Jean e Samuel, homens dignos e afetuosos, cuidadosos em providenciar espaço afetivo suficiente para o crescimento e maturação de seu filho.


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