quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Um novo mundo e um novo Deus

conexaoplaneta


Marcos Monteiro

As imagens trazidas pela televisão são do espetáculo de multidões de refugiados que caminham, peregrinação que nos remete à história de uma humanidade que deslizando cada vez mais sobre rodas desaprendeu a caminhar. Caminhar é jeito de ser humano, deslocamento que autentica a liberdade para mudanças que carregamos no corpo e na alma. Quase todas as religiões convidam os fiéis a peregrinações que propõem pisadas por pequenos caminhos guiadas por um sagrado que nos convida ao entendimento profundo dos caminhos da vida e dos caminhos para dentro de nós mesmos. Nos romances, o aparecimento do peregrino solitário no cotidiano de uma pequena cidade são anúncios de outras possibilidades e denúncia silenciosa do mesmismo.

Mas estamos diante de imagens de peregrinações coletivas com proporções que fascinam, entrelaçamento de histórias complexas que compõem a rede da vida e se lançam na pescaria de esperanças e possibilidades. Todos esses fogem de uma violência, embutida no sistema civilizatório mundial, explícita por uma guerra provocada por diferentes interesses. O tempo e o espaço mais uma vez se tornam a grande questão e o desenho de utopias sempre em algum outro lugar são o fator de atração para cada pessoa e cada família que se dispõe a seguir.

A quantidade desproporcional de peregrinos desvela a alma humana e ameaça a rigidez das estruturas. As razões e as emoções que sempre andam juntas formam um leque e compõem um campo reativo entre os extremos do ódio e a sensibilidade da compaixão. Compaixão é uma disposição ironicamente interessante. O tempo que se gasta na sensibilização pelos refugiados que peregrinam na Europa alivia os nossos olhos e as nossas consciências dos peregrinos e refugiados de cada dia. No nosso cotidiano, os refugiados da violência que nós mesmo produzimos caminham anonimamente.

No útero da civilização ocidental chamada Europa as peregrinações provocam conflitos previsíveis. As milenares estruturas com suas sólidas construções estabelecem as estratégias de resistência, violência legalizada e institucional, contra as táticas de ocupação, porque seres humanos alimentam ilusões e uma das maiores é essa antiquada ideia de que habitar a terra é direito de todos. A ocupação do planeta foi violentada pela colonização de origem europeia e os colonizados de todos os lugares agora se acham no direito de habitar espaços que pertenciam apenas a colonizadores e marcham em profusão pelas estradas.

Vez por outra a civilização mundial foi sacudida por peregrinações em massa. Na idade muito antiga, a epopeia dos apirus, guiados pelo Deus Javé, ameaçando pequenas cidades cananéias, proporcionou um pequeno redesenho daquelas paragens e um grande imaginário que fundou eixos sobre os quais a atual civilização foi edificada. Depois a persistente peregrinação de pessoas à margem da civilização que constituiu a religião cristã também abalou alicerces e propôs caminhos novos para a humanidade. Jesus era um Deus de carne, osso e memória, que orientava a peregrinação dos pequeninos que se foram tornando grandes provocando aquilo que Gramsci chamou de revolução passiva. Depois a peregrinação dos povos árabes, unificados pelo Deus Alá e por seu profeta Maomé, provocou brechas e abriu caminhos novos dentro da monolítica cristandade medieval.

Em um pequeno colóquio sobre religião na ilha de Capri, na virada do milênio, Gadamer escreve uma pequena digressão sobre dois mil anos de história sem um novo Deus. Quando a televisão se debruça sobre uma refugiada e essa declara que marcha com a confiança em Deus, estamos prontos a perguntar sobre que Deus é esse e aptos a refletir sobre as estranhezas e perplexidades que os caminhos da humanidade trazem sobre as estruturas em que nos movemos todas e todos. Especialmente a estrutura religiosa. Em nome de Deus, de Jesus Cristo e de Alá, construímos templos, instituições e monumentos imponentes, os quais têm servido à civilização de violência em que nos movimentamos.

A marcha dos refugiados e refugiadas pode servir à marcha da civilização na busca de um mundo melhor. Pode ser que toda essa agitação seja uma grande comoção uterina, a história procurando dar à luz a uma nova sociedade. Pode ser que um novo Deus, ou o antigo Deus de todos os oprimidos, discriminados ou violentados, esteja guiando o seu povo para essa terra sempre prometida. Seja o que for que esteja acontecendo, estamos sendo convidados a repensar a nossa civilização e a reconsiderar os valores sobre os quais construímos a nossa experiência religiosa. Essas imensas peregrinações nos chamam a redesenhar o nosso mundo e a recriar o nosso Deus.




3 comentários:

  1. Marcos, que bom você voltar a escrever. Muito bom o texto. Eu tenho as minhas frustrações com o mundo ocidental e, inclusive, acho que está na hora de ampliarmos o nosso horizonte e começarmos a olhar o mundo como um todo e não mais ficarmos presos aos pecados do Ocidente que se enriqueceu às custas da crueldade com as culturas por ele dominadas. É papo para irmos longe...

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    1. Realmente, Clarissa, temos sempre o que conversar quando se trata de relações político-sociais em que a religião sempre vem embutida...um grande abraço.

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