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Viajar de camelo e voltar de avião
Toda meditação bíblica começa com
aquilo que podemos chamar de angústia
polissêmica. Buscamos significado em um texto de significados limitados,
mas, mesmo assim, de múltiplos significados.
É próprio da linguagem ser
polissêmica, possuir variados significados. A Cabala, esse movimento místico
judaico da Idade Média, dizia que a Torah possuía 600 mil significados, um para
cada israelita presente ao pé do Monte Sinai. Sem levar em conta os exageros
dessa postura, um tanto mágica, essa assertiva nos ilustra o sentimento da
angústia em tentar encontrar um significado que fale às nossas vidas e, ainda
assim, mantenha-se fiel ao texto em sua auto-apresentação.
Para isso, assumimos uma dupla
atitude: uma de natureza hermenêutica e outra, de natureza teológica, sendo que
as duas atitudes se interpenetram e se complementam na busca de sentido.
Reconhecemos, inicialmente, que
há um texto diante de nós e que não o compreendemos, porque esse texto fala de
outro povo, de outra época, através de outra língua. Estamos distanciados dos
sentidos e dos propósitos do texto em sua confecção original.
Por outro lado, esse texto foi
elaborado em um mundo e, apesar das distâncias históricas ou geográficas, é o
mesmo mundo em que vivemos, o que nos possibilita, através de um esforço
continuado, chegar a compreender alguns
dos significados do mundo em que o texto foi produzido e do qual nos fala.
A atitude hermenêutica é a
cansativa tarefa de empreender uma viagem de camelo ao mundo antigo de Acabe e
de Ben-Hadad para trazê-los de avião para o nosso século, junto com os
profetas, e conduzí-los, em apertados ônibus, pelas complexas e urbanizadas
ruas de nossa cidade.
Entretanto, é a atitude teológica
que marca a nossa procura. Não queremos somente decodificar um texto, queremos
ouvir uma mensagem. Buscamos não apenas significados, mas acima de tudo
procuramos no texto a palavra de Deus e procuramo-la para nós.
Na atitude hermenêutica, precedemos
o texto com o nosso saber, nossa capacidade crítica e nossas ferramentas
científicas. Na atitude teológica, o texto nos precede: ganha ascendência sobre
nós. Meditamos o texto para que ele nos medite. Estudamos intensamente,
julgamos, criticamos e analisamos o texto, para que ele nos estude, nos julgue
e nos critique. Arrumamos e desarrumamos o texto, para que ele desarrume e
arrume a nossa vida.
Esquisitos profetas em um mundo de reis
diocesedecaceres |
Mais do que história, os livros
dos Reis são teologia da história, tecida a partir do sentimento de catástrofe
nacional que se abateu sobre uma nação derrotada, esmagada e exilada. Livro
elaborado a partir de fontes escritas e tradições orais, defende a tese de que
o problema, a crise de Israel, é função de sua desobediência à palavra de Deus,
ao pacto assumido no Sinai e reassumido tantas vezes, mas nunca cumprido por
parte do povo.
Há um propósito e uma ação de
Deus na história e o pacto significa que Israel ocupa um lugar central nesse
propósito. O pacto promulga o direito e os compromissos do soberano Javé e os
direitos e os deveres do seu povo. Javé recebe a terra e o povo como
propriedade, oferece proteção contra os
inimigos e exige adoração exclusiva e atitudes éticas compatíveis com a
cidadania divina.
Os guardiões do pacto são esses
imprevisíveis e esquisitos profetas. Palavra viva e atualizada de Javé, lembranças
do Sinai e personificações da Torah. O livro dos Reis, não é o livro dos reis, mas
o relato das ações e relações desses estranhos profetas, cuja palavra abençoava
e amaldiçoava reis.
Os profetas dos livros dos Reis, eram
profetas com nomes próprios como Elias, Eliseu, Micaías, Natã, Gate, Aías.
Importantes e considerados profetas, alguns com trânsito permanente na corte.
Mas também profetas sem nome, apenas profetas. Anônimos, transitórios e
inesperados profetas, de uma palavra que os ultrapassava.
Grande parte deles viviam em
comunidades, os filhos-de-profetas ou os irmãos-profetas, partilhando o pão e a
palavra de Javé, verdadeiras reservas da palavra de Deus à espreita, vigilância
contínua da história.
Frente ao poder dos reis, representavam
um poder limitador. Estranho poder, sem armas nem riquezas, emanado da força da
Palavra. Poder da linguagem que surgia para corrigir os rumos da história, essa
construção tão humana, de interesse divino.
O capítulo 20 do primeiro livro
de Reis é a narrativa, com cores de história popular, das relações desses profetas anônimos com um
momento concreto da história do rei Acabe.
É a história da palavra profética pronunciada em um momento de crise e
de suas inesperadas consequências. Dividimo-la
em alguns pedaços, cada um com um título meio folhetim, para manter o seu sabor
popular.
Amei esta aula Marcos, quem me dera ter um professor deste na sala de qualquer escola... Que bom que temos esta sala aqui, não é exclusiva, mas quem teria condições de poder pagar a hora aula deste camarada... Saudades!
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