segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A passagem dos sonhos à realização

conhecerkardec

Gn 39-47

Todos esses capítulos narram como os sonhos do adolescente José se tornaram uma realidade. Examinados com cuidado, eram sonhos de grandeza em que não lhe bastava ser o patriarca da família (feixes de trigos que se inclinavam reverentes), precisava ser o governador do mundo (sol, lua e estrelas em atitude de adoração). José se torna uma espécie de Faraó, governador do Egito tão poderoso quanto o próprio, senhor de uma terra faminta e castigada pela seca.

Os sonhos incomodavam seus irmãos e José tem de caminhar pelos subterrâneos da vida. De lama de cisterna a mercadoria de caravana até chegar a prisioneiro de calabouço, estranho caminho para realização de sonhos. Quais as lições aprendidas nesse tortuoso percurso? Jacó, seu pai, aprendera a ser sempre ardiloso, a usar todas as armas da transgressão para subir na estrutura patriarcal. José nunca transgride os códigos, aprende o caminho da obediência e da aliança com os mais poderosos.

Bem, Javé acompanha todas essas coisas na realização desses sonhos e Javé tem seus segredos e propósitos. Continua distribuindo sonhos: copeiro, padeiro e o próprio Faraó sonham. O sonhador José havia se tornado perito em decifrar sonhos e isso o leva a se tornar governador de todo o Egito por decreto do Faraó. Os sonhos de vacas magras e vacas gordas, espigas mirradas e espigas cheias, são avisos de Javé sobre fome no mundo e necessidade de se preparar para sobreviver.

Desse modo, diante de uma fome que atinge todo o mundo, os irmãos vão ao Egito para comprar alimento e se inclinam diante de José exatamente como nos sonhos. Aliás, o mundo todo, faminto, se inclina diante de José, que se tornou todo poderoso.

Em uma série de peripécias deliciosas, José termina por se dar a conhecer aos irmãos e desse modo garantir a sobrevivência dessa família amada por Javé, levando-a para o melhor da terra do Egito. E o resto do povo?

Aqui vale a pena perceber a ambiguidade dos sonhos realizados. Estranho esse José que sofreu bastante, mas sempre se colocou ao lado do sistema, respeitando os códigos patriarcais, inclusive os códigos sexuais. O episódio mais interessante é o momento em que escapa totalmente ao assédio da mulher de Potifar, alegando fidelidade ao comandante da guarda real.

Não há nenhuma narrativa a partir da mulher de Potifar e novamente nem sabemos o nome dela. Se há embutida uma história de amor e paixão complicada como muitas outras não interessa a ninguém. A vingança da mulher que denuncia José por assédio faz com que se confirme o estereótipo da mulher pecadora. E José passa para a história como o jovem casto e fiel capaz de enfrentar as tentações. Será?

Alguns episódios protagonizados por José são sutis e cruéis, embora aparentemente bem comportados. José joga com os seus irmão o jogo da ameaça e do perdão. Mas mais ainda: José arrecada do povo egípcio mantimento que depois vende ao mesmo povo, prerrogativas do poder. E pior ainda: toma terras e gado de todo o povo e finalmente o escraviza, tirando-lhe autonomia e dignidade pessoal. E o povo ainda agradece.

José parece ser dessas pessoas bondosas e certinhas, muito úteis para os poderosos. Desde pequeno José estava do lado do pai contra os irmãos (e contava ao pai os malfeitos que via). Do lado de Potifar contra a mulher. Do lado do carcereiro, do lado do Faraó. Sempre a serviço do poder. José era o azeite de oliva da carruagem androcêntrica e patriarcal.

Estanho José e mais estranho ainda Javé. Em suas predileções, manobrava sempre para salvar a família de Jacó, mesmo que para isso precisasse escravizar todo o povo do Egito. Sonhos quando realizados trazem a marca da ambivalência. Para que essa família querida de Javé continue sonhando com a liberdade, todo um povo torna-se impedido de sonhar. José, libertador de sua família torna-se o opressor do Egito.

2 comentários:

  1. Fenomenal, nunca ví antes releitura interpretativa parecida deste acontecimento bíblicos. Fascinante Marcos. Gostei da reflexão, mas cada vez mais eu fico intrigado com essa contra-mão de vários textos do antigo testamento. rsrsrs

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  2. Fenomenal, nunca ví antes releitura interpretativa parecida deste acontecimento bíblicos. Fascinante Marcos. Gostei da reflexão, mas cada vez mais eu fico intrigado com essa contra-mão de vários textos do antigo testamento. rsrsrs

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