Marcos Monteiro
No meu mosteiro compulsório, na Era do Coronavírus, na Idade
do Bolsonáurio, a única regra sobre os pecados é cometê-los, e eu começo
invejando. Muitos amigos e amigas, em suas próprias celas, têm mais luxúria do
que posso, mas faço um esforço, mesmo admitindo que luxúria imaginada nunca
será a mesma. Então, eu misturo os pecados e saboreio gulosamente uma manga,
bem devagarinho, sentindo as nuances e texturas palatáveis, deixando o prazer
escorrer pelas lembranças.
A gula é um dos meus pecados favoritos, embora sob receita
médica e controle nutricionista; e eu vou saboreando, a prestações, o meu
amendoim torrado e o feijão com arroz de cada dia, com tempero de filha. Às
vezes, por puro exibicionismo, tiro uma foto e envio seletivamente, com
requintes de crueldade, admito. Mas também degusto textos, vídeos, filmes,
imagens, e, até sonhando, devoro alimentos exóticos. Essa noite, sonhei com
parlamentares ao forno e pronunciamentos executivos ao molho pardo. Acordei com
uma bruta indigestão.
Confesso que confessar é estratégia de pura ostentação, tipo
campeonato de cicatrizes e narrativas de fragilidades, em que as vítimas
perdedoras esperam os aplausos. Então, vou acumulando a minha ira, para saber
se despejo em quem recebe ou em quem não investiga facadas, aguardando as
supremas decisões sobre se estamos ou não em estado de sítio, em Atibaia.
Interrompo a raiva do sistema econômico e das redes de desinformação, somente
para me espreguiçar numa rede de pano e me desinteressar até do meu
desinteresse, e abrir espaço virtual para piadas de primas, primos, irmãos e
irmãs, sobrinhos e sobrinhas, os melhores humoristas do planeta (dos quais me
orgulho), sendo o meu irmão caçula o melhor de todos, um cearense que nasceu em
Sergipe.
Com tantos amigos e amores acumulados, vaidade é um pecado
que não tenho direito de não cometer, até porque os vídeos com as acrobacias do
melhor neto do mundo, são enviadas por meu filho, os quais moram em Feira de
Santana. Morei muito tempo nessa cidade baiana, o suficiente para garantir que
muitos melhores do mundo em alguma coisa estão ou estiveram por lá. Balançando
na rede novamente, saboreio as poesias do meu filho e curto as fotos de suas
pizzas, com água na boca; como vocês já desconfiam, do melhor poeta e pizzaiolo
do planeta.
Fico pensando que o contrário da vaidade é a avareza; guardo
segredos e ternuras, no fundo do baú, as quais não pretendo dividir nem por
testamento. Tranquei lembranças e escondi palavras em túneis, sobre as quais me
debruço solitário, proprietário único, olhando de soslaio possíveis predadores.
E lembro, como era difícil, quando criança, dividir doces e guloseimas. Mamãe
teve que me ensinar a partilhar, e eu já perdoei. Na nossa casa, toda a minha
família sabe, eu comia metade do cuscuz com leite de cada manhã. A outra
metade, os outros e outras dividiam. Mas eu ficava um pouco triste. Foi quando
no meu aniversário, mamãe me permitiu, como presente, comer o cuscuz sozinho.
Sou muito grato, e acumulo as lembranças de todos os cuscuz que já comi. A
imagem de um cuscuz tornou-se símbolo de meus pecados prediletos. E confesso
que, se eu tivesse um cofre, o protegeria com uma combinação bem complexa, e guardava
lá dentro, longe de acessos indiscretos, cuscuz, leite e ovos.
Recife, 07 de maio de 2017
Muito bom mesmo
ResponderExcluirÓtimo texto, meu amigo Marcos.
ResponderExcluirPara terminar meu dia, não houve passatempo melhor que mim revistar com suas guloseimas de flocos de milho. Rsrsrsrsr muito bom o texto!
ResponderExcluirQuis dizer "deleitar".
ResponderExcluirGostei muito.
ResponderExcluirNesse mosteiro o cuscuz é uma delícia guardada nesse cofre mítico ao lado do leite e do ovo.
ResponderExcluirQue delícia é a degustação dessa prato.
Um saber singularmente misterioso.
Os mistérios do cuscuz ...esse que seduz, que é uma luxúria, que provoca a gula!
Sempre é Muito bom ver suas colocações bem humoradas e sorrir , neste tempo onde a poluição viral que se espalha , nos impede de gargalhar . Excelente. Continue assim Marcos .
ResponderExcluirFeliz em degustar das palavras delciosas e rechedas com cuscuz e ovo daquele que na minha opinião está entre os melhores escritores do mundo. Profunda admiração e respeito por este profeta deitado numa rede de pano. Gratidão pelo presente em forma de palavras.
ResponderExcluirManinho, você não perde por esperar.Na primeira vez que em sua casa, vou arrombar o cofre, roubar todo o cuscuz e ainda o ovo. O leite deixo lá pra você...
ResponderExcluirQue delícia de texto
ResponderExcluirKKKKKKkkkkkkkkkkkkkk Que maravilhosa forma de assumir pecados!!!!!
ResponderExcluirFeiticeiro com palavras... memórias e anseios potentes!
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