Geralmente
tranqüila e pacata, Mãe Silícia de vez em quando me aparece respirando ira e
revolta e, nesses momentos, eu sinto como se ela tivesse mil anos e me encolho
como se fosse culpado de sua incontrolável indignação. Nessa ocasião, um jovem
casal, novos moradores da Vila, fora encontrado assassinado e, de entre os seus
braços, misturada com o sangue dos pais e chorando sem parar, foi retirada a
sua filhinha recém-nascida.
– A violência
desce de cima e acaba com os debaixo. E o pior é que a violência dos ricos se
transforma em violência de pobre contra pobre – disse, revoltada e quando
tentei acalmá-la me desafiou imponente: –
E Jesus nunca ficou com raiva?
Baixei a cabeça
envergonhado de mim mesmo e me lembrei do romance de Nikos Kazantizakis, “O Cristo recrucificado”. Uma aldeia
grega se prepara para a encenação anual da paixão de Cristo e Monolo, jovem
pastor de ovelhas e artesão de ícones, escolhido pelo pope local para
representar o Cristo, se envolve com os miseráveis habitantes de uma outra
aldeia destruída pelos turcos. Enxotados pelo pope local, cioso de sua
abastança e resolvido a não comprometer a própria segurança, são socorridos
apenas por Monolo e outros poucos aldeões simples que representariam, na peça
da paixão, alguns dos apóstolos. Capturado ao tentar roubar provisões para os
miseráveis, Monolo é condenado à morte e compartilha, assim, o próprio destino
do Cristo que iria representar.
Mas o detalhe
mais importante dessa história, emblema do drama que ali se reproduzia, era o
ícone de Jesus que Monolo construía ao longo dos acontecimentos. De início
pacato e tranqüilo como a própria inocência e boa vontade iniciais de Monolo, o
rosto de Jesus torna-se, no final, crispado de fúria, como provavelmente
estaria ao expulsar, de chicote na mão, vendilhões e derrubar mesas de
cambistas no templo de Jerusalém. Transformado de casa de oração em covis de
salteadores, de símbolo de libertação em centro de opressão, o templo merecia
não a reverência, mas a fúria do Filho de Deus.
E eu fico me
perguntando se Deus, por um breve momento, apenas por um breve momento, não
deveria sustar a sua misericórdia e derramar a sua fúria não sobre as
conseqüências, mas sobre as causas, sobre a violência institucional e orçamentária
organizada por um poder que privilegia bancos e gigantescas construções
suspeitas e esquece enfermos, desempregados, subempregados, aposentados,
professores e funcionários públicos. Quem sabe seja a hora de se deixar vibrar
novamente a ira de Mãe Silícia e o chicote de Jesus Cristo.
(Esse texto se encontra no livro “Vila
Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em
contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de
Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila
Maravila: gols de esperança no campo da vida”)
Aí sim! Apoiado!
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