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“O olhar de Ianasi regula o
brilho do sol”. A frase cuidadosa de Rubengálvio não descrevia claramente o que
sempre acontecia e o pessoal tentava melhorar: “O olhar de Ianasi acende a lua
quando desaparece o sol”, ou “Ianasi clareia o mundo pelo olhar”, ou ainda, “a
energia do sol vem do brilho do olhar de Ianasi”, e ainda e ainda, “o sol
alimenta a vida e o olhar de Ianasi alimenta o sol”.
Gerlúcido garante que as frase
sobre Ianasi dão um livro e propõe uma espécie de ciranda musical, recorrente e
inacabada, para homenagear a responsável maior pela iluminação do ambiente da
turma. Ainda pensou em usar a sua mania de organizar hipóteses científicas para
medir a relação existente entre o olhar de Ianasi e mudanças ecológicas. A
impressão de que aparecem nuvens no céu quando o semblante de Ianasi se anuvia
e de que a luz se apaga quando fecha os olhos não recebeu medição comprovada.
Também a turbulência do clima planetário, aquecimento global, terremotos,
tsumanis, acontecendo em abundância exatamente em tempos que o olhar de Ianasi
sofria uma espécie de curto-circuito, parecia hipótese temerária, como parecia
temerário associar o choro que apareceu inesperado no rosto dela com a chuva
que caiu torrencialmente. Bem, por estranha coincidência, quando parou de
chorar parou de chover.
Ianasi não era feita somente de
olhar: ela sorria e sua gargalhada cristalina, intermitente e de diferentes
durações, fornecia melodias para canções populares ou eruditas. O pessoal
sentia vontade de dançar quando ela sorria. Além de tudo isso, Ianasi era
belíssima de corpo e de rosto, o que lhe trazia alguns problemas que foi
aprendendo a administrar. Todo mundo se apaixonava por Ianasi e ela recebia
cantadas, manhã tarde e noite (até de madrugada já aconteceu) de homens e
mulheres de todas as idades, tamanhos e etnias. Então, ela aprendeu a esperar e
a gostar de cada cantada que aparecia, nos momentos e das pessoas mais
inesperadas. Somente duas pessoas nunca lhe cantaram: Gerlúcido e Filippo. De
Gerlúcido, intérpretes e hermeneutas disputam sobre a possibilidade de uma
certa frase ter sido uma espécie de cantada no estilo gerlúcido. A ela
voltaremos mais tarde.
Filippo, bem, Filippo era
considerado pelas meninas um moreno dengoso, falso tímido, que atraía e
seduzia, para desespero dos homens que não entendiam nunca seu poder de
sedução. Quando encontrou Ianasi não lhe fez proposta nem declaração, colocou a
mão sobre os seus ombros, beijou-lhe a face e, como ela não reclamou,
beijou-lhe a boca. Quando ela abriu os olhos e sorriu surpresa, invadiu o seu
sorriso com um beijo tão profundo e tão prolongado que a turma e o tempo parou.
O sol, estupefato, quase se descontrolou, despejando calor de meio-dia em hora
de pôr-de-sol. Desde então, Filippo nunca mais largou Ianasi. Deixe eu dizer de
outro jeito. Filippo larga Ianasi para comer, dormir, estudar e trabalhar, mas
sua ocupação de verdade é Ianasi, o resto é intervalo.
No começo, sentia um ciúme
desesperado porque ninguém deixou de cantar Ianasi por causa de sua companhia.
Reclamou, chorou, partiu pra briga com alguns até se acostumar. Bem, não foi
bem assim. Desenvolveu um tipo de resposta que ninguém sabe do que chamar pois,
como descobriu Gerlúcido, não existe antônimo para “ciúme”. Como denominar esse
tipo de comportamento? Chegam os dois juntos em qualquer ambiente e começam a
chover galanteios e cantadas. Filippo? Impávido! Depois de algum tempo, o
moreno começa a ficar impaciente e começa a partir para algumas pessoas,
indagando: “Por que não cantou minha mulher? O que tem contra ela?” Com alguns
já ficou muito irritado e até tentou sair no braço, dando suficiente trabalho
para a “turma do deixa-disso”.
Pois bem, Gerlúcido desistiu de
investigar ligações ecológicas com o olhar de Ianasi, mas não desistiu de criar
hipóteses, porque não é de abandonar suas mais queridas manias. Abandonou a
investigação de “nexos causais inobserváveis” e procurou descobrir a causa real
do brilho do olhar de Ianasi. A descoberta que o levou no caminho de uma série
de “hipóteses gerlúcidas” pode-se chamar de casual, mas com certeza foi
resultado do seu olhar investigativo bem treinado.
Pois bem, um belo dia estava
Ianasi sentada com a turma na mesa, comendo, bebendo, brilhando e sorrindo,
acompanhada de Filippo (claro!), quando Gerlúcido observou um aumento súbito do
brilho do olhar. Ao mesmo tempo, percebeu um movimento das belas pernas da bela
mulher, afastando em quase-chute um gato que tentava se enroscar em seus pés. A
partir de então, começou a anotar cuidadosamente esses momentos de elevação de
brilho de olhar e percebeu que podia associá-los cada a algum ato ou gesto de
rejeição de gatos, cachorros, crianças e papagaios.
Daí para as hipóteses foi um
salto. A primeira era bem estranha: A variável responsável pela geração do
brilho do olhar de Ianasi seria a sua crueldade. Dizendo de outra forma: o
brilho do olhar de Ianasi poderia até alimentar o brilho do sol, mas era
alimentado por sua crueldade dirigida especialmente para gatos, cachorros,
crianças e papagaios. Por incrível que pareça, esses tais animais sempre
procuram fascinados essa bela mulher, também apaixonados, também seduzidos por
seu brilho, beleza, alegria e paixão.
Para compreender essa relação,
Gerlúcido propõe a hipótese dos “fluxos dialético-existenciais gerlúcidos”
agindo de modo complexo dentro de um “campo gerlúcido dialético-existencial”.
Não sei se consigo explicar bem tudo isso. Mas atos perceptivos, atos
cognitivos, atos volitivos, atos emocionais, são fluxos dinâmicos organizados em
pares interdependentes de modo complexo. Por exemplo, o fluxo emocional
dialético existencial amor-ódio: Para se muito amar precisa-se muito odiar e às
vezes esse fluxo se dirige para a mesma pessoa. Como dá para perceber o fluxo
alegria-crueldade seria atípico ou complexo, explicável apenas pelas interações
criadas dentro do campo dialético-existencial com outros fluxos.
Mesmo assim, Gerlúcido garante
que há dados suficientes para corroborar as suas hipóteses, podendo inclusive
estendê-las para o caso de Jutizildo, Etenildo ou Cremildo. Na nossa personagem
em pauta, basta ver o que acontece quando, cercada da admiração das crianças, manda
calarem a boca, ficarem quietas ou qualquer coisa assim. Ou quando afasta
gatos, cachorros e papagaios, com a mão ou com o pé. O seu olhar normalmente
brilhante se torna fulgurante, então.
Encadernado com esmero, Gerlúcido
ofereceu um livro de cerca de 830 páginas com as anotações manuscritas sobre
sua pesquisa. Nas páginas introdutórias, a frase considerada por estudiosos
como a cantada gerlúcida: “posto às investigações, disposto ao sofrimento,
proposto à lealdade, posposto às paixões”. Nas conclusões, a explicação das
cantadas e suas funções no fluxo gerlúcido crueldade-brilho no olhar. A
elegante rejeição de cada cantada é muito cruel, como é cruel para cada
apaixonado ou apaixonada a sua paixão por Filippo. É crueldade extremada que
Ianasi se baste e é crueldade maior para toda a turma que Filippo lhe baste.
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