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Sei
que já falei da surpreendente ira de Mãe Silícia, quando a matrona da Vila
Maravila torna-se a própria encarnação da justiça. Mas, como descrever o
destempero, avassalador e sem limites, a enxurrada de palavras de baixo calão,
o repertório reprimido pela sensatez cotidiana, despejado todo assim, de vez,
sobre um réu ausente, mas evidentemente criminoso?
Encabulado,
vermelho e sem saber o que dizer, tentei não sei com que frases de efeito
apaziguar a sábia e ela voltou-se em gargalhada exuberante e novamente
inesperada sobre a minha vexatez. E reassumindo o costumeiro e paciente timbre
cotidiano de mestra da vida, desenrolou mais uma de suas histórias sobre esse
Jesus que passeava pelas ribanceiras dos morros e pelas beiras dos açudes do
Nordeste, acompanhado ou não de conhecidos discípulos.
Caminhando
ao lado de Pedro, esse companheiro de tantas histórias, observava um vaqueiro
correndo descontrolado sobre as suas reses inquietas, abrindo a boca em xingamentos
que ilustravam a sua evidente exasperação. Pedro, intempestivamente, como
sempre, critica o comportamento tresloucado do campeiro, talvez insinuando
alguma necessidade de intervenção de Jesus, quando o Mestre o interpela:
–
“Calma, Pedro. Boca do diabo, coração de Deus.”
A
peregrinação continua até que chegam a um lugar, onde um pastor evangélico (e
nessa altura da narrativa, eu tenho quase certeza de identificar um brilho de
ironia nos sempre sensatos olhos de Mãe Silícia) faz brilhante e exultante
prédica, a ponto de Pedro, emocionado, com lágrimas de gratidão, olhar Jesus de
soslaio e desmanchar-se em elogios, novamente esperando alguma ação concreta,
uma palavra, uma bênção, um milagrezinho favorecedor do Filho de Deus. Mas
esse, inesperadamente, apenas declara:
–
“Calma, Pedro. Boca de Deus, coração do diabo.”
Minha
reação foi de uma grande gargalhada, talvez grande demais, talvez nervosa
demais, como quem veste rápido demais a carapuça.
E
honestamente, gostaria de parecer muito mais com Mãe Silícia e sua sabedoria,
sensata ou não, temperada ou não, comedida ou não. O púlpito, o aconselhamento
e a vida religiosa nos faz a todos iguais, modulando a mesma voz monótona,
repetindo os mesmos gestos exóticos, controlando as emoções e a vida.
E
de tanto repetir o mesmo script, de tanto pronunciar as mesmas palavras, de
tanto balbuciar a palavra Deus, o nosso coração vai se esvaziando ou se
endurecendo, perdendo a sintonia com o ritmo da própria vida. A nossa boca pode
até ser de Deus, mas o nosso coração cada vez mais é diabólico. Não será
exatamente essa a advertência de não se tomar em vão o nome dele? Não exagerar
no controle?
Descontrolar-se,
se preciso for, reaprender o caminho da transparência, deixar a palavra feia
desentupir as veias do coração, para que esse se aquiete no riso franco e o
corpo caminhe leve; e a boca pode se encher do diabo para que paradoxalmente o
coração seja de Deus.
(Esse texto se encontra no livro “Vila
Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em
contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de
Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila
Maravila: gols de esperança no campo da vida”)
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