clicrbs |
O capítulo 20 do primeiro livro
de Reis é a narrativa, com cores de história popular, das relações desses
profetas anônimos com um momento concreto da história do rei Acabe. É a
história da palavra profética pronunciada em um momento de crise e de suas
inesperadas consequências. Dividimo-la em seis pedaços, cada um com um título
meio folhetim, para manter o seu sabor popular.
Quando um homem volta a ser rei
e age como se fosse Deus.
Vencida a crise, Acabe reassume o
controle da situação. Volta ao trono e assume a responsabilidade das decisões,
suas e da nação, no antigo desrespeito à palavra profética. É um homem que
volta a ser rei e age como se fosse Deus. Israel volta a ser nação de uma única
palavra, sem consulta à palavra profética, sem consulta ao conselho de anciãos.
Nem a crise nem a vitória da palavra profética sobre a crise conseguiram a
conversão de Acabe.
Se a palavra de Javé fora
importante na definição da guerra, será a palavra de Acabe que ditará a
estratégia de relacionamento com o tradicional inimigo e Acabe age como um
grande estadista. Perdoa o inimigo e
consegue vantagens econômicas e políticas para a nação.
Então cingiram sacos aos lombos e cordas aos pescoços e,
indo ter com o rei de Israel, disseram-lhe: Deixa-me viver, rogo-te.
Ao que disse Acabe: Pois ainda
vive? É meu irmão.
Aqueles homens, tomando isto por bom presságio, apressaram-se
em apanhar a sua palavra, e
disseram: Bene-Hadade é teu irmão!
Respondeu-lhes ele: Ide, trazei-mo. Veio, pois, Bene-Hadade
à presença de Acabe; e este o fez subir ao carro.
Então lhe disse Bene-Hadade: Eu te restituirei as cidades
que meu pai tomou a teu pai; e farás para ti praças em Damasco,
como meu pai as fez em Samaria. E eu, respondeu Acabe,
com esta aliança te deixarei ir. E fez com ele aliança e o deixou ir.
(v. 32-34)
Do ponto de vista político a
solução parecia satisfatória, mas para a palavra profética não há ponto de vista
político: todos os pontos de vista são teológicos. A palavra profética não
reconhece um espaço-limite, intromete-se
em todos os espaços.
Como guardião da Torah, o profeta
não admite a banalização da palavra aliança.
Não pode haver aliança fora da Torah. Aliança não é um jogo de conveniência
política, mas uma questão de identidade religiosa, de fidelidade a Javé.
Do mesmo modo, a palavra irmão não pode ser usada indevidamente
para o opressor do povo de Javé. O profeta não permite a manipulação das
palavras da tradição. Ele é também guardião do significado. Não são os reis que
escolhem e formam as palavras, mas as
palavras que escolhem e formam o povo, inclusive os reis. Diante das palavras
sagradas está proibida qualquer ingenuidade e muito menos qualquer oportunismo.
Quando a palavra profética muda
bruscamente de direção
e condena o que libertara.
O texto vai chegando ao seu
final, com uma brusca mudança no tom da palavra profética. Até agora ela fora
aprazível e consoladora para o rei Acabe. Mas, a palavra profética é livre, não
está atrelada a reis ou a conveniências e, diante da impertinência de Acabe, ela
se torna palavra dura e palavra condenatória.
A palavra profética começa
mostrando o seu outro lado, severo, duro, amaldiçoador, no episódio do profeta
devorado pelo leão por sua desobediência. A palavra profética é exigente e quer
ser levada a sério. Não pode ser tratada com a negligência de Acabe e, por
isso, o profeta, guardião da palavra, é julgado sumariamente.
É um outro profeta, esmurrado a
seu pedido por alguém, disfarçado de guerreiro, que vai apresentar a nova face
da palavra profética a um Acabe satisfeito consigo mesmo. Prepara uma história que é uma armadilha. É a
história cifrada de Acabe e Ben-Hadad, a partir da expectativa da palavra
profética. Acabe cai na armadilha e pronuncia a sentença contra si mesmo. E, recebendo
explicitamente a nova e dura palavra, retira-se irritado e desgostoso.
E disse ele ao rei: Assim diz o
Senhor:
Porquanto deixaste escapar da mão o homem que eu havia
posto para destruição, a tua vida responderá pela sua vida,
e o teu povo pelo seu povo.
E o rei de Israel seguiu para sua casa,
desgostoso e indignado, e veio a Samaria.
(v. 35-43)
Temos dificuldade com esse
aspecto destruidor da palavra profética e, mesmo lembrando dos condicionamentos
históricos peculiares à época, queremos
tirar lições desses textos sombrios para os nossos dias. Então, precisamos lembrar, entre outras
coisas, que a Bíblia desautoriza uma leitura romântica, cor-de-rosa e idealizada
de situações de crise. Os problemas concretos da existência são mais complexos
do que as recomendações das cartilhas legalistas.
O profeta ali, era o anunciador
do juízo de Deus para o opressor, e o estado, na pessoa do rei, seria o
executor desse juízo. Na situação de exceção que se havia estabelecido, estava
proibida qualquer clemência para o opressor. Quando Acabe assume, sem a palavra
profética, a clemência oportunista, teria perdido a chance de alterar os
destinos de Israel.
O capítulo começa com crise e
termina ainda com crise. O texto é exatamente a história de como um homem e uma
nação vencem uma crise sem escapar da crise. Não conseguiram perceber que cada
crise é apenas o sinal de uma crise maior e que a maior de todas as crises é a
palavra de Deus.
Dentro da perspectiva do livro
dos Reis, Israel marchava para a destruição e toda a ação profética era uma
tentativa de ensino sobre a grande crise da palavra de Javé. Nos múltiplos significados
da palavra crise, a palavra de Javé era acrisolamento, purificação, critério, decisão, oportunidade e
perigo. Era a grande crise, a única e verdadeira crise de Israel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário