domingo, 25 de novembro de 2018

MEU PAI, PEDRO MONTEIRO, FARIA CEM ANOS

foto provisória Pedro Jr

Marcos Monteiro

Hoje, faz cem anos que papai começou a chorar. Mas um belo dia, as mãos que seguravam enxada precisavam aprender poesia e pegaram um trem para Recife com baldeação de algum tempo em Maceió.

Ele ficou uns anos conversando com Deus, que morava no Colégio Batista Alagoano. Mas o roçado de Pedro Monteiro não tinha cerca, nem cancela, e papai seguiu adiante para pastorear Honorina, uma cabrita que nunca foi ovelha de ninguém, nem queria.

Papai estudou grego e fez teologia e perseguiu mamãe por tudo que era igreja e tudo que era bonde, até ela perceber que o melhor mesmo era casar e ir morar em Garanhuns para eu nascer, o filho mais bonito, porque sou eu que estou escrevendo o texto.

Foram habitar em Boquim, um lugar que todo mundo sabe que existe, mas ninguém sabe onde é, e ensinaram inglês, português, ciências e tudo mais, e pastorearam a cidade toda, Stael, Yolanda, Dona Cidália, descendência e mais 10.997 habitantes. Dali começaram uma nova humanidade e fizeram ao todo sete filhos, três meninas e quatro meninos que nasceram em tudo que era Nordeste, e o mais bonito sou eu porque o texto fui eu que fiz.

Papai era pastor da vida, por isso se alguém estava perto de morrer, lá ia ele resolver coisas pelo mundo e deixava mamãe de guarda para fazer cerimônia fúnebre. O roçado de Pedro nunca teve cerca nem cancela e se mudou para Aracaju, depois para Natal, depois para Recife, mas nunca saiu de Boquim, cidade pequena mas lugar grande demais.

Em Aracaju, Pedro e Honorina inventaram uma igreja e papai comprou uma bicicleta para subir e descer ladeira e voltar mais depressa pra casa pra ver mamãe. Quando pegou uma pneumonia, resolveram seguir para Natal, pastorear a Igreja Batista do Alecrim, e era muito bom, eu me lembro, e era como em todas as igrejas.

Mamãe dirigia a música, a Sociedade Feminina, a Sociedade de Moças, as Mensageiras do Rei, a Sociedade Masculina, as Reuniões Sociais, os Embaixadores. Fazia tanta coisa e ocupava tanto espaço que sobrava pra papai ser pastor, somente, e ele gostava, e vivia feliz. Só chorava quando não via mamãe.

Porque papai tinha um defeito na vista, só enxergava mamãe, o resto era borrão. Eu era a mancha mais bonita, claro, esse texto é meu. Bem, Marconi me lembrou que papai era homem de Deus e era verdade. Mas Deus tinha o nariz afilado, o Espírito Santo o cabelo cacheado e Jesus gostava de cantar e fazer rima e organizar brincadeiras de roda.  Coincidências.

Pois bem, uma vez mamãe , que gostava de Convenções, Acampamentos e Retiros, foi bater não sei onde, ou Andrômeda ou Rio de Janeiro, e papai gostava de mamãe livre, mas sentia falta e pegou sandália, bicicleta e caminhão e correu atrás, mas não conseguiu chegar e a cabeça doeu tanto que precisamos, a família toda, ir morar no Recife para papai se curar e o remédio sempre foi mamãe.

Nesses tempo em que mamãe estudava e trabalhava manhã, tarde e noite, papai começou a vender figurinha, bíblia mirim e a dar Bíblia de presente para a Rainha da Inglaterra. E começou a inventar coisas. Traduziu livros em inglês, inventou o passe livre, construiu a transamazônica, e fez o croquis da trans-sulamericana que não sabemos em que gaveta foi parar.

O tempo que passava sem mamãe, papai choramingava pra Deus “Eu sei que Deus é sabedor do meu sofrer, da minha dor” e Deus sabia que a dor de papai era saudade. Papai continuava “meu Deus, meu pai, vem minorar a minha dor” e mamãe chegava, a dor diminuía e o “penar se transformava em gozo”.

O roçado de Pedro não tinha cerca nem cancela e um dia, ninguém entendeu, papai resolveu mudar de nível e foi brincar de nuvens lá por cima. Honorina ficou e brincava e sonhava com ele e parecia tudo certo, esse desacerto todo, mas desconfiei.

Uma noite, eu vi mamãe no sofá, quieta e assistindo à televisão, quando a cadeira balançou sozinha, a toalha da mesa esvoaçou e a porta rangeu sem motivo. Fui até o elevador e a luz se acendeu e depois se apagou e não tinha ninguém. Agucei o ouvido e ouvi uma música choramingada, “Eu sei que Deus é sabedor do meu sofrer, da minha dor”. Então eu sorri contente.

Hoje faz cem anos que Pedro começou a chorar, mas sei que de novo ele vai estar por aqui, enquanto a gente lembra almoçando galinha, porque todo dia ele aparece para esperar mamãe, até o dia em que possam juntos ir lá pra cima, brincar de nuvem.

Recife, 25 de novembro de 2018.

7 comentários:

  1. Lindo texto, meu irmão. Fiquei muito curioso de conhecer o homem que brinca de nuvens.

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  2. Parabéns "Língua Encantada" - 'filho e mancha mais bonita' de Pedro (o Grande) e Honorina a bela; pela demonstração inequívoca de amor ao seu pai!

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  3. Excelente belo texto. Um primor de amor e poesia devotado a seu "papai e mamãe". O filho mais bonito também escreveu o texto mais bonito. Honrou a seu "papai e mamãe". Um dia iremos todos brincar com as nuvens e com Jesus lá no céu e não haverá mais lágrimas, nem saudade e nem dor. Só haverá amor! Um doce e eterno AMOR saboreado nos braços do PAI. Fraterno abraço Marcos! Shalom!

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  4. Belíssimo, Marcos. Um primor de carinho e leveza. Gosto muito do humor inteligente nos seus textos, a exemplo desrd. Se seu pai tiver da nuvem lendo, chuverá certamente sorrisos de alegria. Abraços.

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  5. O filho mais bonito desenhou em palavras uma história belíssima. Parece-me que esse filho bonito é igual ao pai em grandeza.

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  6. Eis que surge em minha mente a figura querida e doce do meu tio Pedro. Sim, decerto brincaremos nas nuvens com ele, Ele e tia Honorina!!Um beijo meu primo.

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  7. Obrigada pelo privilégio que nos deu de te conhecer melhor proseando com poesia e poetizando com prosa.
    Simplesmente lindo. Fiquei com vontade de saber mais deles.

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