foto provisória Pedro Jr |
Marcos Monteiro
Hoje, faz cem anos que papai
começou a chorar. Mas um belo dia, as mãos que seguravam enxada precisavam
aprender poesia e pegaram um trem para Recife com baldeação de algum tempo em
Maceió.
Ele ficou uns anos conversando
com Deus, que morava no Colégio Batista Alagoano. Mas o roçado de Pedro
Monteiro não tinha cerca, nem cancela, e papai seguiu adiante para pastorear
Honorina, uma cabrita que nunca foi ovelha de ninguém, nem queria.
Papai estudou grego e fez
teologia e perseguiu mamãe por tudo que era igreja e tudo que era bonde, até
ela perceber que o melhor mesmo era casar e ir morar em Garanhuns para eu
nascer, o filho mais bonito, porque sou eu que estou escrevendo o texto.
Foram habitar em Boquim, um lugar
que todo mundo sabe que existe, mas ninguém sabe onde é, e ensinaram inglês,
português, ciências e tudo mais, e pastorearam a cidade toda, Stael, Yolanda,
Dona Cidália, descendência e mais 10.997 habitantes. Dali começaram uma nova
humanidade e fizeram ao todo sete filhos, três meninas e quatro meninos que
nasceram em tudo que era Nordeste, e o mais bonito sou eu porque o texto fui eu
que fiz.
Papai era pastor da vida, por
isso se alguém estava perto de morrer, lá ia ele resolver coisas pelo mundo e
deixava mamãe de guarda para fazer cerimônia fúnebre. O roçado de Pedro nunca
teve cerca nem cancela e se mudou para Aracaju, depois para Natal, depois para
Recife, mas nunca saiu de Boquim, cidade pequena mas lugar grande demais.
Em Aracaju, Pedro e Honorina
inventaram uma igreja e papai comprou uma bicicleta para subir e descer ladeira
e voltar mais depressa pra casa pra ver mamãe. Quando pegou uma pneumonia,
resolveram seguir para Natal, pastorear a Igreja Batista do Alecrim, e era
muito bom, eu me lembro, e era como em todas as igrejas.
Mamãe dirigia a música, a Sociedade
Feminina, a Sociedade de Moças, as Mensageiras do Rei, a Sociedade Masculina,
as Reuniões Sociais, os Embaixadores. Fazia tanta coisa e ocupava tanto espaço
que sobrava pra papai ser pastor, somente, e ele gostava, e vivia feliz. Só
chorava quando não via mamãe.
Porque papai tinha um defeito na
vista, só enxergava mamãe, o resto era borrão. Eu era a mancha mais bonita,
claro, esse texto é meu. Bem, Marconi me lembrou que papai era homem de Deus e
era verdade. Mas Deus tinha o nariz afilado, o Espírito Santo o cabelo cacheado
e Jesus gostava de cantar e fazer rima e organizar brincadeiras de roda. Coincidências.
Pois bem, uma vez mamãe , que
gostava de Convenções, Acampamentos e Retiros, foi bater não sei onde, ou
Andrômeda ou Rio de Janeiro, e papai gostava de mamãe livre, mas sentia falta e
pegou sandália, bicicleta e caminhão e correu atrás, mas não conseguiu chegar e
a cabeça doeu tanto que precisamos, a família toda, ir morar no Recife para
papai se curar e o remédio sempre foi mamãe.
Nesses tempo em que mamãe
estudava e trabalhava manhã, tarde e noite, papai começou a vender figurinha,
bíblia mirim e a dar Bíblia de presente para a Rainha da Inglaterra. E começou
a inventar coisas. Traduziu livros em inglês, inventou o passe livre, construiu
a transamazônica, e fez o croquis da trans-sulamericana que não sabemos em que
gaveta foi parar.
O tempo que passava sem mamãe,
papai choramingava pra Deus “Eu sei que Deus é sabedor do meu sofrer, da minha
dor” e Deus sabia que a dor de papai era saudade. Papai continuava “meu Deus,
meu pai, vem minorar a minha dor” e mamãe chegava, a dor diminuía e o “penar se
transformava em gozo”.
O roçado de Pedro não tinha cerca
nem cancela e um dia, ninguém entendeu, papai resolveu mudar de nível e foi
brincar de nuvens lá por cima. Honorina ficou e brincava e sonhava com ele e
parecia tudo certo, esse desacerto todo, mas desconfiei.
Uma noite, eu vi mamãe no sofá,
quieta e assistindo à televisão, quando a cadeira balançou sozinha, a toalha da
mesa esvoaçou e a porta rangeu sem motivo. Fui até o elevador e a luz se
acendeu e depois se apagou e não tinha ninguém. Agucei o ouvido e ouvi uma
música choramingada, “Eu sei que Deus é sabedor do meu sofrer, da minha dor”.
Então eu sorri contente.
Hoje faz cem anos que Pedro
começou a chorar, mas sei que de novo ele vai estar por aqui, enquanto a gente
lembra almoçando galinha, porque todo dia ele aparece para esperar mamãe, até o
dia em que possam juntos ir lá pra cima, brincar de nuvem.
Recife, 25 de novembro de 2018.
Lindo texto, meu irmão. Fiquei muito curioso de conhecer o homem que brinca de nuvens.
ResponderExcluirParabéns "Língua Encantada" - 'filho e mancha mais bonita' de Pedro (o Grande) e Honorina a bela; pela demonstração inequívoca de amor ao seu pai!
ResponderExcluirExcelente belo texto. Um primor de amor e poesia devotado a seu "papai e mamãe". O filho mais bonito também escreveu o texto mais bonito. Honrou a seu "papai e mamãe". Um dia iremos todos brincar com as nuvens e com Jesus lá no céu e não haverá mais lágrimas, nem saudade e nem dor. Só haverá amor! Um doce e eterno AMOR saboreado nos braços do PAI. Fraterno abraço Marcos! Shalom!
ResponderExcluirBelíssimo, Marcos. Um primor de carinho e leveza. Gosto muito do humor inteligente nos seus textos, a exemplo desrd. Se seu pai tiver da nuvem lendo, chuverá certamente sorrisos de alegria. Abraços.
ResponderExcluirO filho mais bonito desenhou em palavras uma história belíssima. Parece-me que esse filho bonito é igual ao pai em grandeza.
ResponderExcluirEis que surge em minha mente a figura querida e doce do meu tio Pedro. Sim, decerto brincaremos nas nuvens com ele, Ele e tia Honorina!!Um beijo meu primo.
ResponderExcluirObrigada pelo privilégio que nos deu de te conhecer melhor proseando com poesia e poetizando com prosa.
ResponderExcluirSimplesmente lindo. Fiquei com vontade de saber mais deles.