Sinval Galeão e Tonho de Honorina viveram a época amarga da ditadura, caminhantes de estradas possíveis e impossíveis, críticos e construtores de mundos. Nessa semana, Tonho de Honorina fez um show, comemoração de quarenta anos de músico, compositor e cantor de qualidade, viajante do mundo todo, mas vivente à vontade na nossa Feira de Santana. E Sinval Galeão é coordenador da Comissão da Verdade em Feira de Santana e apresentou o seu depoimento, entre outros, em audiência pública.
Muitos depoimentos nos trouxeram o
barulho truculento de um tempo em que policiais invadiam casas e quartos de
estudantes procurando apreender “livros e armas”, nessa ordem. Tentar controlar
consciências e corpos é a arrogância de qualquer tipo de despotismo e a
ditadura pretendia varrer do solo do Brasil a “subversão e a corrupção”. O
programa demorou demais para se mostrar autodestrutivo, até deixar claro para
quem quisesse ver que o inimigo não era o outro. A estrutura vigente,
hierárquica, centralizadora e autocrática era a subversão maior e os militares
e civis corruptos, aliados e bajuladores de ditadores que se revezavam, eram o emblema de uma corrupção sistêmica.
Sinval Galeão era um jovem
estudante (formou-se em economia) militante do partido comunista, preso,
torturado, exilado, que ainda hoje luta por um mundo melhor, tomando posições
corajosas, rompendo com seu partido, quando esse se alia a históricos
opressores, ainda preocupado com a sociedade em que vive. Como Tonho de
Honorina é cidadão de Feira de Santana, vivendo à vontade de seu pequeno
comércio no centro da cidade.
Tonho de Honorina, ou apenas
Dionorina, caminhou pelos mesmos tempos por outros caminhos. Seu canto e sua
dança é também grito de vitória contra todo tipo de controle e tentativa de
extorsão. Seu corpo negro venceu a poliomielite e se tornou instrumento
musical, música de resistência que inclui o “reggae” e muito mais. Sua formação
é popular e erudita, podendo dedilhar Villa Lobos e Bob Marley, além de compor
suas próprias músicas, como a forte homenagem que faz a Zumbi. Tornou-se músico
apesar de tudo e de todos, apesar da discriminação racial, da pobreza e do
desinteresse da ditadura.
A audiência pública da Comissão
da Verdade e o show de Dionorina foram dois momentos distintos que nos
remeteram a um passado doloroso ainda com testemunhas. Testemunhas que fazem a
história do Brasil passear pela Feira de Santana. Já comi acarajé na casa de
Dionorina e já tomei café com Galeão lá em casa. Em Feira, portanto, posso almoçar
com a história do meu país.
A Comissão da Verdade tem um
compromisso com a nossa memória e com o nosso futuro, “para que nunca se
esqueça, para que nunca mais aconteça”. Em um dos depoimentos se enfatizou a
diversidade religiosa da luta. Ateus, pais de santo, espíritas, protestantes e
católicos, fizeram parte da mesma luta, porque a justiça sempre será
democrática e ecumênica. Mas se lembrou que a luta ainda não terminou, até
porque outras ditaduras ainda acontecem, propugnando outras opressões e
injustiças.
O show de Dionorina é muito forte
e mexe com nosso corpo e nossa consciência, até sem querer. A música, o ritmo,
a dança, nos leva para além de nós mesmos e assusta também qualquer projeto de
ditadura. Nossa vida, nosso corpo e nossa arte são incontroláveis. Podemos
sempre, portanto, cantar e dançar contra todo tipo de opressão.
*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do
CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de
Jesus em Feira de Santana, BA e do grupo de pastores da Primeira Igreja Batista
em Bultrins, Olinda, PE. Também faz parte da diretoria da Aliança de Batistas
do Brasil e é membro da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil.
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e
Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055.
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