quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A ira de Mãe Silícia


Geralmente tranqüila e pacata, Mãe Silícia de vez em quando me aparece respirando ira e revolta e, nesses momentos, eu sinto como se ela tivesse mil anos e me encolho como se fosse culpado de sua incontrolável indignação. Nessa ocasião, um jovem casal, novos moradores da Vila, fora encontrado assassinado e, de entre os seus braços, misturada com o sangue dos pais e chorando sem parar, foi retirada a sua filhinha recém-nascida.

– A violência desce de cima e acaba com os debaixo. E o pior é que a violência dos ricos se transforma em violência de pobre contra pobre – disse, revoltada e quando tentei acalmá-la me desafiou imponente: –  E Jesus nunca ficou com raiva?

Baixei a cabeça envergonhado de mim mesmo e me lembrei do romance de Nikos Kazantizakis, “O Cristo recrucificado”. Uma aldeia grega se prepara para a encenação anual da paixão de Cristo e Monolo, jovem pastor de ovelhas e artesão de ícones, escolhido pelo pope local para representar o Cristo, se envolve com os miseráveis habitantes de uma outra aldeia destruída pelos turcos. Enxotados pelo pope local, cioso de sua abastança e resolvido a não comprometer a própria segurança, são socorridos apenas por Monolo e outros poucos aldeões simples que representariam, na peça da paixão, alguns dos apóstolos. Capturado ao tentar roubar provisões para os miseráveis, Monolo é condenado à morte e compartilha, assim, o próprio destino do Cristo que iria representar.

Mas o detalhe mais importante dessa história, emblema do drama que ali se reproduzia, era o ícone de Jesus que Monolo construía ao longo dos acontecimentos. De início pacato e tranqüilo como a própria inocência e boa vontade iniciais de Monolo, o rosto de Jesus torna-se, no final, crispado de fúria, como provavelmente estaria ao expulsar, de chicote na mão, vendilhões e derrubar mesas de cambistas no templo de Jerusalém. Transformado de casa de oração em covis de salteadores, de símbolo de libertação em centro de opressão, o templo merecia não a reverência, mas a fúria do Filho de Deus. 


E eu fico me perguntando se Deus, por um breve momento, apenas por um breve momento, não deveria sustar a sua misericórdia e derramar a sua fúria não sobre as conseqüências, mas sobre as causas, sobre a violência institucional e orçamentária organizada por um poder que privilegia bancos e gigantescas construções suspeitas e esquece enfermos, desempregados, subempregados, aposentados, professores e funcionários públicos. Quem sabe seja a hora de se deixar vibrar novamente a ira de Mãe Silícia e o chicote de Jesus Cristo.

(Esse texto se encontra no livro “Vila Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila Maravila: gols de esperança no campo da vida”)

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