quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Um lateral chamado Biuzão

gartic

Segundo seu Madeira, o melhor time de futebol de todos os tempos foi a seguinte formação do Maravila F. C. que todos os moradores sabem de cor e salteado de tanto ouvir seu Madeira recitar, naquele honroso e consagrado quatro dois quatro que ninguém quer mais usar.

Terêncio, Biuzão e Magela. Loureiro e Genival. Rubenírio e Aratunga. Roído, Rapaz, Biu do Efeito e Caçula. O técnico era Aroeira.

Biuzão tinha fama de grosso, mas não era grosso. Era que com a lapa de perna que tinha e com o tamanho e musculatura do tórax, era um milagre que conseguisse dominar a bola e matar a faceira no peito. Mesmo assim ele a dominava. É verdade que quando  resolvia partir, esquipando, resfolegando e relinchando para cima dos adversários, o outro time tremia e até a redondinha desejava sair de perto. Ninguém segurava. Milicunha do Ipiranga, sempre o Ipiranga, armou um toco na maldade e Biuzão sentiu, mas Milicunha foi direto pro hospital com fratura na tíbia e torcicolo no pescoço, tamanho foi o choque. Um tiro de Biuzão, goleiro tinha de ter técnica para desviar, senão quebrava a mão. Se tentasse segurar, entrava com bola e tudo, o juiz marcava o gol e expulsava o besta pela loucura.

Biuzão só não fazia mais gol, porque delicado e educado como ninguém, evitava o máximo as arrancadas ou os tiros certeiros em direção ao gol, como se pedisse desculpa pela força descomunal de que dispunha. O técnico Aroeira, desesperado por dispor e não dispor desse recurso colossal, vivia tentando descobrir meios de fazer o Biuzão perder a enorme paciência (bem maior ainda do que os seus bíceps, tríceps ou quadríceps -  sei lá),  único caminho de levar Biuzão a fazer irresistíveis gols. Roído, a mando do técnico, só conseguira uma vez.  Nas outras vezes, só conseguira mesmo fora dobrar o Biuzão (maior aficcionado de suas brincadeiras) de tanto rir, pondo inclusive partidas em situação de risco. 

Um dia, Roído tirara uma brincadeira com Maria Odete e finalmente despertara o ódio alucinado de Biuzão. Mas a reação não fora a esperada arrancada em direção ao gol adversário. Biuzão partiu mesmo foi para cima de Roído, levantou-o pelo pescoço e o Maravila F. C. somente não ficou sem o seu luminar ponta direita porque a ira de Biuzão do mesmo modo como viera passou subitamente. A partir daí, nem Roído nem ninguém tirou mais qualquer tipo de brincadeira com Maria Odete.

Biuzão era um entroncado e atarracado mulato de olhos verdes. Mas, se era musculoso,  era muito mais delicado e gentil. Pelo tamanho do bíceps (tríceps?), porém,  ninguém se atrevia a pensar, quanto mais a insinuar que era homossexual, mesmo quando ninguém o via com mulher. Naquela época (seu Madeira teve o cuidado de contar) dezessete mocinhas de boa família viviam suspirando pelo Biuzão que só suspirava por Maria Odete (segredo descoberto muito depois) que não suspirava por ele nem por ninguém.

Foi nesse período que Biuzão começara as suas famosas e irresistíveis arrancadas que quase o tornaram no grande artilheiro do time, desbancando mesmo o consagradíssimo Biu do Efeito. Na decisão do campeonato, contra o famoso Ipiranga, Biuzão fez quatro gols em uma partida só. Dois de irresistíveis arrancadas, um de falta e outro de um tiro de longa distância, cuja violência furou a rede e derrubou uma jaca de uma frutífera jaqueira a cerca de vinte metros do campo de futebol suburbano. O resultado final sete a cinco completa a inesquecível história do primeiro tricampeonato do Maravila F. C. Carregado em triunfo, a alegria de Biuzão exibia lampejos de melancolia.

Um dia, entretanto, Maria Odete tropeçou e foi imediata e instintivamente amparada pelo tímido e musculoso abraço de Biuzão. Ali cruzaram os olhos, as almas e as vidas tão plenamente, a ponto de Biuzão abrir imenso sorriso que só conseguiria fechar oito meses depois, passado o efeito da surpresa, permanecendo entretanto a face de beatífica felicidade infinita. Maria Odete, naquele mágico instante, tornou-se para Biuzão o que Biuzão já havia se tornado para Maria Odete, fechada assim essa equação de primeiro, segundo, vigésimo e milionésimo grau, extinguindo-se, para desespero do técnico Aroeira, o motivo para as frutíferas arrancadas e tiros de longa distância de Biuzão.

Foi quando Aroeira, que técnico excepcional era Aroeira, descobriu uma nova maneira de Biuzão fazer gol: comemoração e homenagem.

Em sua perspicácia, Aroeira sabia que não podia abusar e que era preciso convencer Biuzão da validade tanto da homenagem quanto da comemoração e tudo tinha de estar relacionado com Maria Odete.

Seis meses de namoro e olhe o motivo para um gol de comemoração; a beleza e a simplicidade de Maria Odete e eis um motivo para outro gol. Nunca na mesma partida, mas Aroeira tornou Biuzão o artilheiro mais regular do time. Um gol por jogo, religiosamente, para a mãe, o pai e as três irmãs de Maria Odete ou pelo aniversário de Maria Odete, a aprovação de Maria Odete em determinada matéria, como aplicada estudante que era, a cura de Maria Odete de um resfriado, e haja descobrir e reinventar a cada jogo, além do esquema tático do time, o motivo para o garantido gol de Biuzão.

A fórmula só terminou quando Biuzão resolveu abandonar o futebol. E foi assim, sem mais nem menos, no meio de uma partida importantíssima, depois de fazer o gol que homenageava o aniversário de um ano do primeiro filho de Maria Odete, Biuzão saiu tranqüilamente do gramado, sem pedir licença para ninguém, e, tomando a criança no colo e dando o braço para Maria Odete, foram caminhar, passear, sorrir e viver a vida sem mais jogar futebol por obrigação. Assim, do campo para a história, de noventa minutos estruturados e concretos para o jogo mitológico da fama. Desespero de Aroeira, saudade dos torcedores e prestígio eternizado de Biuzão que, de vez em quando, para matar a saudade, participava de um ou outro racha.

(Esse texto se encontra no livro “Vila Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila Maravila: gols de esperança no campo da vida”)

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