quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O velhinho no bar

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Na pequena cidade, havia uma única mensagem atingindo todas as religiões, causando discussões, perplexidades e desavenças. Acusação de heresia para todos os lados e reivindicação de direitos autorais sobre o vaticínio, monotonamente igual: “Ele vem”. Viria para visitar seus fiéis e Ele seria Ele, mas quem seria? Javé ou Alá? Olorum ou Buda? Maomé? Jesus Cristo? Krishna? Shiva? Moroni? Tupã? Padre Cícero?
           
Durante algum tempo, nenhuma agremiação religiosa, igreja, congregação, terreiro, centro, templo, círculo de meditação, podia se reunir sem que alguém se levantasse em transe e pronunciasse, sob qualquer língua, conhecida ou desconhecida, o mote sagrado: “Ele vem”. Ninguém podia fazer individualmente uma oração, prece, meditação, ou jogar búzios, arrumar cartas de baralho para consulta, assumir a postura de lótus, fazer o sinal da cruz, ajoelhar-se, ou deitar o rosto em terra, sem que a sua consciência fosse invadida por uma certeza inabalável: “Ele vem”.
           
Todos os recantos sagrados se encheram de fiéis a cantar, pregar, orar, meditar, dançar, ou efetuar qualquer ritual religioso e o pequeno jornal da cidade e o serviço de informação, de casa em casa, ou de bar em bar, não comentava outra coisa. A expectativa era grande e esperava-se que alguém fosse ganhar com essa visita transcendental, alguma crença ou rito ou culto fosse validado, o que ajudaria a resolver muitos dos problemas causados tanto pela religião quanto pela falta dela.
           
Muita gente começou a peregrinar de culto em culto e um velhinho assumiu a responsabilidade de descobrir para onde Ele viria. Todos os dias visitava pacientemente qualquer lugar onde se realizasse algum culto ou ritual e depois da exaustão do dia ia para o bar mais próximo tomar a sua cerveja que ninguém é de ferro.
           
Viu e ouviu muita coisa, mas não conseguia se decidir sobre o local mais provável em que Ele se consideraria acolhido. Honestamente falando, se entediava com essas visitas religiosas e quase sempre cochilava nas prédicas, e começou a se acostumar com o fim da noite no bar. Achava certo deleite na conversa animada, nas canções que irrompiam espontaneamente, especialmente as canções de amor. Algum grande segredo carregava esse coração velho que deslizava pelos braços de dançarinas e participava animadamente da conversação, a maioria das vezes sorrindo descontroladamente. De vez em quando um palpite, uma palavra sábia e sabida, dessa sabedoria acumulada pelo tempo, saía de sua boca, fora isso quase não dizia nada, como a desfrutar do próprio silêncio.
           
Ficava particularmente entusiasmado com a conversa religiosa, a teologia do bar. Nunca imaginara como se falava de religião em mesa de bar, mas algo bem mais divertido, complexo, contraditório, território e altar da livre expressão e da livre significação. E o que cada um dizia sobre a sua investigação, sobre o famoso “Ele vem”, lhe levava às gargalhadas. Sua fascinação especial era para os palpites dos bêbados, profetas dionisíacos, capazes das hipóteses mais criativas e exageradas.
           
Cumpria ainda suas obrigações de peregrino, de culto em culto, mas mergulhava cada vez mais nos seus novos caminhos, de bar em bar. Bebia cada vez mais, dançava cada vez mais, cantava e até começou a conversar bem mais, o que lhe trazia alguns transtornos. A precisão científica de algumas observações suas deixava o povo silencioso, perplexo e desconfiado. Quando se empolgava e falava sobre as dimensões cósmicas do Universo todo o mundo ficava extasiado, a ponto de passar a ser motivo de conversa de bar, competindo com o bordão religioso: “Ele vem”.
           
Não se sabe se por distração ou por insondáveis propósitos, o tumulto se estabeleceu definitivamente, quando o velhinho, depois de ter bebido bastante, pediu um litro de água mineral para o garçom e começou a encher de cerveja o copo de cada companheiro. O milagre estava às vistas e a epifania completada. O tumulto no bar foi o aumento da felicidade geral e o pessoal se revezando para tocar Deus, abraçar Deus, carregar Deus nos braços. Mas a notícia se espalhou e o tumulto das religiões foi totalmente diferente.
           
Primeiro cercaram Deus por todos os lados e nunca tinha havido tanta unidade religiosa como nesses momentos. E interrogaram Deus e criticaram Deus e questionaram Deus. Foi acusado de ser o diabo disfarçado e houve alguns mais exaltados que chegaram a jogar pedras. Deus transformou cada pedra em diferente tira-gosto e distribuiu entre o povo do bar que a tudo assistia divertido. Mas a fúria sobre Deus se transformou em fúria sobre o bar e os religiosos quebraram tudo e incendiaram o herético estabelecimento.
           
Deus desapareceu e, para muitos, sua vingança foi dura demais e prolongada demais. Durante o ano todo, ninguém conseguiu realizar culto, ritual, celebração, meditação coletiva, sem ter o espaço sonoro misteriosamente invadido, por quase duas horas, pelo repertório das vitrolas de bar da cidade, em alto e não muito bom som.


Um comentário:

  1. Esse velhinho me lembra muito um Deus que o profeta lemos de Brito anunciou durante um tempo nos corredores do seminário, seu nome "NADÂO"...Texto muito valioso e precisa ser mais divulgado.

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