quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Boca do diabo e coração de Deus


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Sei que já falei da surpreendente ira de Mãe Silícia, quando a matrona da Vila Maravila torna-se a própria encarnação da justiça. Mas, como descrever o destempero, avassalador e sem limites, a enxurrada de palavras de baixo calão, o repertório reprimido pela sensatez cotidiana, despejado todo assim, de vez, sobre um réu ausente, mas evidentemente criminoso?
              
Encabulado, vermelho e sem saber o que dizer, tentei não sei com que frases de efeito apaziguar a sábia e ela voltou-se em gargalhada exuberante e novamente inesperada sobre a minha vexatez. E reassumindo o costumeiro e paciente timbre cotidiano de mestra da vida, desenrolou mais uma de suas histórias sobre esse Jesus que passeava pelas ribanceiras dos morros e pelas beiras dos açudes do Nordeste, acompanhado ou não de conhecidos discípulos.
              
Caminhando ao lado de Pedro, esse companheiro de tantas histórias, observava um vaqueiro correndo descontrolado sobre as suas reses inquietas, abrindo a boca em xingamentos que ilustravam a sua evidente exasperação. Pedro, intempestivamente, como sempre, critica o comportamento tresloucado do campeiro, talvez insinuando alguma necessidade de intervenção de Jesus, quando o Mestre o interpela:
              
– “Calma, Pedro. Boca do diabo, coração de Deus.”
              
A peregrinação continua até que chegam a um lugar, onde um pastor evangélico (e nessa altura da narrativa, eu tenho quase certeza de identificar um brilho de ironia nos sempre sensatos olhos de Mãe Silícia) faz brilhante e exultante prédica, a ponto de Pedro, emocionado, com lágrimas de gratidão, olhar Jesus de soslaio e desmanchar-se em elogios, novamente esperando alguma ação concreta, uma palavra, uma bênção, um milagrezinho favorecedor do Filho de Deus. Mas esse, inesperadamente, apenas declara:
              
– “Calma, Pedro. Boca de Deus, coração do diabo.”
              
Minha reação foi de uma grande gargalhada, talvez grande demais, talvez nervosa demais, como quem veste rápido demais a carapuça.
              
E honestamente, gostaria de parecer muito mais com Mãe Silícia e sua sabedoria, sensata ou não, temperada ou não, comedida ou não. O púlpito, o aconselhamento e a vida religiosa nos faz a todos iguais, modulando a mesma voz monótona, repetindo os mesmos gestos exóticos, controlando as emoções e a vida.
              
E de tanto repetir o mesmo script, de tanto pronunciar as mesmas palavras, de tanto balbuciar a palavra Deus, o nosso coração vai se esvaziando ou se endurecendo, perdendo a sintonia com o ritmo da própria vida. A nossa boca pode até ser de Deus, mas o nosso coração cada vez mais é diabólico. Não será exatamente essa a advertência de não se tomar em vão o nome dele? Não exagerar no controle?
              
Descontrolar-se, se preciso for, reaprender o caminho da transparência, deixar a palavra feia desentupir as veias do coração, para que esse se aquiete no riso franco e o corpo caminhe leve; e a boca pode se encher do diabo para que paradoxalmente o coração seja de Deus.


(Esse texto se encontra no livro “Vila Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila Maravila: gols de esperança no campo da vida”)

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