quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Além da prática e da teoria

blogdozanei

Toda prática alimenta uma boa teoria, toda boa teoria redunda em uma boa prática, ou não existe nada mais prático do que uma boa teoria, é o que diria o filósofo Karl Popper examinando os fundamentos da ciência e da técnica. Mas o que dizer do lance de Ronaldinho Gaúcho contra o Celta de Vigo na partida em que o bicampeonato espanhol foi conquistado por antecipação? e conseqüentemente o que dizer de todo o seu futebol? Teórico ou prático? Que conceitos ou sistemas lógicos alimentam as suas inusitadas e perfeitas jogadas?
           
O Barcelona ganhou por um a zero e o gol de Eto foi bonito e importante, mas a jogada que ganhou destaque na mídia foi um lançamento, uma inversão efetuada do meio do campo para o lado do gramado, onde Ronaldinho, no lado esquerdo recolhe elegantemente a bola e quase imediatamente dá um passe preciso para Larson, na cara do gol. E novamente, quando se trata de Ronaldinho Gaúcho, o sentimento de impotência em descrever um lance que está acima da possibilidade de descrição. Talvez se analisarmos o lance do ponto de vista da Física ou de outros conceitos e ciências, possamos entender melhor o acontecido.
           
A bola veio alta demais e com força demais para que teoricamente a matada de bola de Ronaldinho Gaúcho acontecesse de verdade. Portanto, as leis da balística e a lei da desacelaração dos corpos em movimento foi desrespeitada pelo modo como a bola foi maciamente recolhida pela chuteira do maior jogador do mundo da atualidade. A física clássica, as leis de Newton, não podem, por conseguinte, explicar a jogada. E o lançamento para o Larson, depois de um corte preciso no defensor, alcançou aquilo que o saudoso treinador Cláudio Coutinho (exatamente o técnico campeão moral da Copa de 78) chamava de ponto futuro. E tudo isso em uma fração de tempo que contrariava inclusive a lei da relatividade de Einstein.
           
A exatidão da bola nos pés de Larson (no exatíssimo ponto futuro) que não se pode haver com as ciências exatas deve procurar nos mistérios religiosos, no esoterismo, a sua base teórica. Não foi realmente um passe, mas uma profecia, um vaticínio, uma antecipação misteriosa de fatos e eventos através de métodos transcendentais, fora do alcance dos meros humanos. Mas a exatidão do lance contraria até mesmo a proverbial dubiedade dos oráculos, a necessária ambigüidade da advinhação.
           
Aliás, de Ronaldinho Gaúcho, Pelé, o principal deus do futebol, chega a afirmar que o mesmo faz jogadas de que ele próprio não era capaz. Portanto, o referido jogador estaria acima da onisciência e da onipotência dos deuses. Só não teria sido ainda castigado pelos deuses gregos, porque os mesmos, apesar da inveja e da certeza de que o mesmo teria cometido a famosa hybris, ou seja, ultrapassado a medida destinada aos mortais, quedam-se extasiados com a grandeza do seu futebol e também temem que a habilidade de Ronaldinho desmoralize o tártaro e seus mitológicos castigos.
           
Porque, pelo futebol que está jogando, Ronaldinho Gaúcho seria capaz de driblar a águia do rochedo de Gibraltar e impedir que a mesma devorasse eternamente o fígado de Prometeu, rolaria montanha acima a enorme pedra de Sísifo, à base de embaixadas, e iludiria com dibles inusitados frutas e água para alimentar e dessedentar a necessidade de Tântalo. E assim, Ronaldinho vai jogando o seu futebol herege e profano, para delírio de multidões e adeptos.
           
Larson recebeu o passe perfeito e perdeu o gol. Não por falta de sorte ou habilidade, mas porque tinha de ser assim. A perfeição da jogada não poderia ser contaminada com a mediocridade do gol. Porque depois de Ronaldinho Gaúcho, o gol, essa monótona moeda de valor do futebol, passou a ser medíocre e questionado. Se houvesse outros critérios de decisão, o Barcelona ainda seria o campeão, mas o placar de cada partida seria totalmente diferente e mais exuberante. Cinco assistências perfeitas a zero, quatro lençóis a um, seis dribles maravilhosos a dois. Ou então, mesmo quando o placar fosse apertado, o Barcelona sempre ganharia, sem nunca sofrer revés, pelo critério diferente de jogada genial indescritível. Uma jogada genial indescritível a zero ou, no máximo, duas jogadas geniais indescritíveis a zero, somente, mas o bastante para garantir o espetáculo e aumentar em muito o número de aficcionados.
         
Cientista, profeta, blasfemo ou artista, não importa bem o que Ronaldinho Gaúcho seja de fato. Além da teoria e da prática está todo o seu futebol e a certeza de que existem verdades absolutas fora da ciência, da religião e da arte. Mais ainda, a certeza de que só existem verdades absolutas nos pés e nas chuteiras cósmicas desse extraordinário jogador.

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