segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A PALAVRA PROFÉTICA E AS SITUAÇÕES DE CRISE I REIS ( IV )

clicrbs

O capítulo 20 do primeiro livro de Reis é a narrativa, com cores de história popular, das relações desses profetas anônimos com um momento concreto da história do rei Acabe. É a história da palavra profética pronunciada em um momento de crise e de suas inesperadas consequências. Dividimo-la em seis pedaços, cada um com um título meio folhetim, para manter o seu sabor popular.

Quando um homem volta a ser rei
e age como se fosse Deus.

Vencida a crise, Acabe reassume o controle da situação. Volta ao trono e assume a responsabilidade das decisões, suas e da nação, no antigo desrespeito à palavra profética. É um homem que volta a ser rei e age como se fosse Deus. Israel volta a ser nação de uma única palavra, sem consulta à palavra profética, sem consulta ao conselho de anciãos. Nem a crise nem a vitória da palavra profética sobre a crise conseguiram a conversão de Acabe.

Se a palavra de Javé fora importante na definição da guerra, será a palavra de Acabe que ditará a estratégia de relacionamento com o tradicional inimigo e Acabe age como um grande estadista. Perdoa o inimigo  e consegue vantagens econômicas e políticas para a nação.

Então cingiram sacos aos lombos e cordas aos pescoços e,
indo ter com o rei de Israel, disseram-lhe: Deixa-me viver, rogo-te.
 Ao que disse Acabe: Pois ainda vive? É meu irmão.   
Aqueles homens, tomando isto por bom presságio, apressaram-se
 em apanhar a sua palavra, e disseram: Bene-Hadade é teu irmão! 
Respondeu-lhes ele: Ide, trazei-mo. Veio, pois, Bene-Hadade
à presença de Acabe; e este o fez subir ao carro. 
Então lhe disse Bene-Hadade: Eu te restituirei as cidades
que meu pai tomou a teu pai; e farás para ti praças em Damasco, 
como meu pai as fez em Samaria. E eu, respondeu Acabe,
com esta aliança te deixarei ir. E fez com ele aliança e o deixou ir.
(v. 32-34)

Do ponto de vista político a solução parecia satisfatória, mas para a palavra profética não há ponto de vista político: todos os pontos de vista são teológicos. A palavra profética não reconhece um espaço-limite,  intromete-se em todos os espaços.

Como guardião da Torah, o profeta não admite a banalização da palavra aliança. Não pode haver aliança fora da Torah. Aliança não é um jogo de conveniência política, mas uma questão de identidade religiosa, de fidelidade a Javé.

Do mesmo modo, a palavra irmão não pode ser usada indevidamente para o opressor do povo de Javé. O profeta não permite a manipulação das palavras da tradição. Ele é também guardião do significado. Não são os reis que escolhem e formam as palavras,  mas as palavras que escolhem e formam o povo, inclusive os reis. Diante das palavras sagradas está proibida qualquer ingenuidade e muito menos qualquer oportunismo.

Quando a palavra profética muda bruscamente de direção
 e condena o que libertara.

O texto vai chegando ao seu final, com uma brusca mudança no tom da palavra profética. Até agora ela fora aprazível e consoladora para o rei Acabe. Mas, a palavra profética é livre, não está atrelada a reis ou a conveniências e, diante da impertinência de Acabe, ela se torna palavra dura e palavra condenatória.

A palavra profética começa mostrando o seu outro lado, severo, duro, amaldiçoador, no episódio do profeta devorado pelo leão por sua desobediência. A palavra profética é exigente e quer ser levada a sério. Não pode ser tratada com a negligência de Acabe e, por isso, o profeta, guardião da palavra, é julgado sumariamente.

É um outro profeta, esmurrado a seu pedido por alguém, disfarçado de guerreiro, que vai apresentar a nova face da palavra profética a um Acabe satisfeito consigo mesmo.  Prepara uma história que é uma armadilha. É a história cifrada de Acabe e Ben-Hadad, a partir da expectativa da palavra profética. Acabe cai na armadilha e pronuncia a sentença contra si mesmo. E, recebendo explicitamente a nova e dura palavra, retira-se irritado e desgostoso.

  E disse ele ao rei: Assim diz o Senhor: 
Porquanto deixaste escapar da mão o homem que eu havia
posto para destruição, a tua vida responderá pela sua vida,
e o teu povo pelo seu povo. 
E o rei de Israel seguiu para sua casa,
desgostoso e indignado, e veio a Samaria.
(v. 35-43)

Temos dificuldade com esse aspecto destruidor da palavra profética e, mesmo lembrando dos condicionamentos históricos peculiares à época,  queremos tirar lições desses textos sombrios para os nossos dias.  Então, precisamos lembrar, entre outras coisas, que a Bíblia desautoriza uma leitura romântica, cor-de-rosa e idealizada de situações de crise. Os problemas concretos da existência são mais complexos do que as recomendações das cartilhas legalistas.

O profeta ali, era o anunciador do juízo de Deus para o opressor, e o estado, na pessoa do rei, seria o executor desse juízo. Na situação de exceção que se havia estabelecido, estava proibida qualquer clemência para o opressor. Quando Acabe assume, sem a palavra profética, a clemência oportunista, teria perdido a chance de alterar os destinos de Israel.

O capítulo começa com crise e termina ainda com crise. O texto é exatamente a história de como um homem e uma nação vencem uma crise sem escapar da crise. Não conseguiram perceber que cada crise é apenas o sinal de uma crise maior e que a maior de todas as crises é a palavra de Deus.

Dentro da perspectiva do livro dos Reis, Israel marchava para a destruição e toda a ação profética era uma tentativa de ensino sobre a grande crise da palavra de Javé. Nos múltiplos significados da palavra crise, a palavra de Javé era acrisolamento,  purificação, critério, decisão, oportunidade e perigo. Era a grande crise, a única e verdadeira crise de Israel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário