quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Roído e o gol de bicicleta

simch

Segundo seu Madeira, o melhor time de futebol de todos os tempos foi a seguinte formação do Maravila F. C., que todos os moradores sabem de cor e salteado de tanto ouvi-lo recitar, naquele honroso e consagrado quatro dois quatro que ninguém quer mais usar: Terêncio, Biuzão e Magela. Loureiro e Genival. Rubenírio e Aratunga. Roído,  Rapaz, Biu do Efeito e Caçula. O técnico era Aroeira. Roído era o seu endiabrado ponta direita. Roído era doido, nos diz seu Madeira, perdia o gol mas não perdia o drible, perdia o campeonato mas não perdia a molecagem. E a torcida adorava Roído. Seu Madeira fala de uma conversa que presenciou entre Roído e o Biu do Efeito:

– Por que não deu o banho de cuia antes de fazer o gol? – perguntou Roído – o camarada tava no ponto... E Biu do Efeito retrucou: – E se eu perdesse o gol?  Aí Roído saiu-se com as dele: – Era só um gol. Pois sempre, depois de suas armações, algumas hilariantes, quando o pessoal tentava reclamar ele respondia: “É só um jogo”, ou então “é só um campeonato”, ou “foi somente um pênalti.” Pois para Roído a vida era melhor do que o jogo, o jogo era melhor do que o título, o drible melhor do que o gol e a brincadeira e a alegria melhor do que tudo.

Conhecendo o Roído, o seu grande futebol e o seu gosto por presepadas, o pessoal tinha o maior cuidado. Ninguém gritava “segura a bola” porque Roído segurava e se fosse dentro da área era pênalti. Ninguém gritava “segura o homem” porque Roído segurava e se fosse dentro da área era pênalti. Aliás, depois de algum tempo, ninguém gritava nada, ninguém  falava nada, ninguém respirava perto do Roído, com medo do que podia vir.

Roído detestava zero a zero. Depois dos trinta minutos do segundo tempo de uma partida com placar em branco, o técnico Aroeira o substituía porque todo mundo sabia que Roído era capaz de fazer gol contra para evitar a desonra e a nulidade do zero a zero. Também detestava gol feio. Gol feio para ele não era gol, era um arroto, uma meleca, um palavrão, como costumava dizer. De certa feita, quando o goleiro do Ipiranga chutou o tiro de meta e a bola batendo no zagueiro desviou inadvertidamente na direção do gol, Roído correu como um doido até dominar a bola e pará-la sobre a marca de cal. Quando os desanimados zagueiros se aproximaram, quando os companheiros já comemoravam, Roído virou de lado e deu um chute para o meio de campo. Um gol daqueles seria uma meleca, não seria um gol. Quanto a gol bonito Roído comemorava até do adversário. Era esquisito ver Roído pular depois de levar um gol. Mas pulava. Não era todo gol, mas tinha gol que ele pulava mesmo. 

Roído mancava ligeiramente de uma perna, mas não havia driblador igual a ele. Garrincha driblava só para a direita, mas Roído driblava para a direita, para a esquerda, para o meio, para cima, para baixo, para frente, para trás e para onde mais ele quisesse.

O sonho de Roído era fazer um gol de bicicleta no finzinho do segundo tempo em uma partida empatada e olhe que ele tentou. A bola bateu na trave, passou perto, o goleiro pegou ou outra coisa mais. Um belo dia, decisão de torneio início contra o Ipiranga, sempre o Ipiranga, finzinho do jogo, zero a zero, a bola sobra limpa e linda para Roído dentro da área e ele consegue a bicicleta perfeita. O goleiro se estica todo, mas não consegue deter a glamurosa. O problema era que a área era do time dele, do Maravila, e o gol foi contra. Mas Roído, no que ele confessava sempre que havia sido o melhor momento de sua vida, pulou em grande estilo de comemoração e correu para abraçar os jogadores adversários. “É só um torneio”, explicou, mas o pessoal demorou a perdoar e o técnico Aroeira o barrou por duas partidas. 

De volta aos gramados, Roído, feliz, apaziguado e com saudade da dengosa, estava jogando mais do que nunca. Mas, incorrigível, continuava driblando e armando presepadas, para delírio e felicidade da torcida passada, para eterna felicidade de seu Madeira e da torcida presente em torno dele, e para a solitária indignação de Paranísio que, socialista convicto, declamava monótona e destoantemente alguma coisa como se colocar sempre inventividade e criatividade a serviço unicamente da solidariedade.


(Esse texto se encontra no livro “Vila Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila Maravila: gols de esperança no campo da vida”).

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