quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Medo

"O grito" 1893.Edvard Munch

No início, a ponte parecia larga e movimentada, mas à medida que caminhava, cada vez mais a sentia estreita e deserta. O horário, o lugar e o próprio modo de ser ponte,  qualquer ponte, tropegavam os seus passos e impunham ao seu coração ritmos desiguais, adivinhando a cada transeunte de onde viria o perigo.
           
Medo não tem hora, mas é sempre mais medo depois das sete da noite, apesar do pensamento contemporizador de que o mal é sempre mais mal por volta da meia noite.
           
Um casal não sinaliza violência mas nunca se sabe. E enquanto não se cruzarem, na inevitável troca de olhares, as pernas continuarão a disfarçar tremores e o corpo todo estará em tensão, alerta máxima, para entre troca de sorrisos meio forçados experimentar o imenso prazer do alívio da não chegada da dor.
           
Medo não tem lugar, mas é sempre mais medo nos inter-espaços, e uma ponte sombria sobre um rio cinzento, entre dois bairros sujos e escuros, disputa de igual para igual com becos e vielas o direito de mais assombrar.
           
Impossível disfarçar qualquer temor. Um adolescente negro, marrudo e sem camisa, caminhante lépido e gingante sobre ponte escura, mais do que possibilidade é certeza do assalto, o qual nem precisa ser de mão armada. O suor é o choro descontrolado de todo o corpo, medo que transborda à flor da pele, desespero que não encontra jeito nem trejeito para a dor.
           
Cruzou com o adolescente que lhe sorriu, sorriso límpido que lhe conquistou o olhar aliviado, somente para perceber um grupo de seis rapazes, mal-encarados, rápidos e seguros de si, com as mãos nos bolsos (fácil de imaginar para quê), e congelar olhar e posição, na impossibilidade de qualquer movimento, somente em espera interminável.
           
Quando esses seis rapazes apenas lhe ultrapassaram em misterioso silêncio, retomou os passos na direção do outro lado da ponte, em um grande e incontrolável suspiro. E desarmou-se completamente, quase com vontade de cantar, o fim da ponte já à vista, e nenhum sinal novo de perigo.
           
Portanto, não estava preparado para o toque no ombro, porque o medo não marca encontro. Mas o encontro com o medo, depois de vários desencontros, torna o medo mais medo em qualquer hora e lugar.
           
Suspiros, suores e tremores voltavam com a força de uma tempestade e somente conseguiu virar-se na direção do toque, na duração de uma ou duas eternidades.
           
Virou-se para encontrar um ancião sorridente e inofensivo que lhe perguntou pelas horas. Abriu-se no mais amplo e autêntico sorriso da sua vida, informou ao ancião que eram sete e vinte, vontade de abraçá-lo e de abençoá-lo por ser somente isso, esse ser humano idoso, meio avô de todos nós, a nos lembrar do valor da vida e da inutilidade dos medos.
           
Sem deixar de sorrir, o velho continuou a falar: “– Agora que me disse as horas, passe o relógio... E agora, a carteira... Esvazie os bolsos... Tire a roupa... Toda... Logo... Logo... E corra, corra para o outro lado da ponte...”
           
Enquanto desabalava nu, em carreira interminável, o velhinho seguia tranqüilo e sorridente até o seu pequeno barraco, nas imediações da ponte, e perante a sua atônita companheira, depositou o seu saque noturno, explicando com um sorriso meio maroto, meio desconcertado.
           
– “Nunca me imaginei fazendo isso..., ainda mais a essa altura da vida... Mas ele estava com tanto medo...”


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