quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A última peregrinação de Carlos

Setur.rs

Carlos era o peregrino, aquele que sabia de peregrinação mais do que todo o mundo, sem que ninguém precisasse ensinar porque já nasceu peregrino, sabendo que a vida é uma infindável peregrinação.
           
Quando todos nós do grupo de peregrinas e peregrinos do Nordeste fizemos a  peregrinação de julho de 2007, Carlos foi o peregrino de sempre, cantador, falador, reclamador, elogiador, mas acima de tudo peregrinador.
           
Impaciente conosco, aprendizes de peregrinos, sempre seguia peregrinando. Dormir, talvez, mas só de vez em quando, comer, somente se tiver, meditar e fazer silêncio, bastam alguns segundos, nada pode atrapalhar o ato da peregrinação.
           
Carlos seguia na frente, às vezes perdido de nossa vista, resmungando e peregrinando. Perto de nós, tocava o pandeiro e compunha a canção, no ritmo do momento, no sabor do caminho caminhante. 
           
Na caminhada, carregava com leveza o seu passado, desde que ninguém atrapalhasse seu projeto de caminhar, o que infelizmente sempre acontecia. Os outros dormiam demais, comiam demais, descansavam demais, sobrando pouquíssimo tempo para os caminhos. Porque Carlos dormia depois e acordava antes, cantando com sua voz rouca qualquer canção que nos despertasse a todos: era preciso peregrinar.
           
Antes do sol, antes do vento, antes da chuva, era a hora de começar e parar somente depois que a última estrela dormisse. Porque viver era caminhar.           
           
Não sei que crime Carlos cometera, mas nenhum pode ter sido maior do que o crime que cometeram de o trancafiarem em uma penitenciária por intermináveis vinte anos. Imagino Carlos caminhando em círculo no exíguo espaço de uma cela superlotada, abrindo caminho aborrecido entre os outros prisioneiros, não dispostos a percorrer caminhos tão impossíveis.
           
De volta à vida e a sociedade, Carlos encontrou o Caminho e o Jesus do caminho, e tornou-se o Carlos-de-todos-os-caminhos, o Carlos-do-sempre-caminhar.
           
Nos diversos caminhos em que caminhamos juntos, não sabíamos o que fazer com Carlos, mas não imaginávamos caminhar sem Carlos. Carlos era aquela figura complexa. Simples e complicada, ao mesmo tempo, servo de todos e senhor de si, que, rotulado de ignorante, sabia que sabia mais do que todos nós juntos, porque sabia a única coisa importante: sabia caminhar.
           
Impaciente com a nossa ignorância, tentava nos revelar o mais simples segredo da vida. O problema não são os caminhos, o problema é o lugar. O lugar é a tentativa absurda de encerrar o caminho e de fixar as pessoas. Um caminho nunca tem fim e pessoas não se plantam, plantam-se árvores. Mas apesar dessa ser a sabedoria mais antiga e mais elementar da humanidade, insistem ainda em finalizar os caminhos e plantar as pessoas.
           
Ninguém tem dúvida, Carlos cansou. Cansou de peregrinar na terra, chegou ao seu limite de suportação e resolveu peregrinar nos caminhos do céu. O peregrino Paulo César foi quem nos advertiu: ele havia nos avisado, era a sua última peregrinação.
           
Agora, temos certeza, começa a saciar a sua sede de infinito, porque está onde os caminhos nunca terminam e onde não há falta de caminhos.
           
Nós, por aqui mesmo, continuaremos a peregrinar, lembrados do seu pandeiro, saudosos da sua rouca voz reclamante, tardiamente atentos às lições que nos deixou. Quando uma folha se bulir lá na frente, quando uma árvore se mexer ao nosso lado, quando ouvirmos um assovio inesperado, abriremos um sorriso largo.
           
E aquilo que desconfiávamos se fará certeza. Carlos continua peregrinando ao nosso lado e à nossa frente.

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