quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A espinha de camurim

milographdigital

Esta quem nos conta é Seu Dolivaldo, naquela sua sabedoria de diamante bruto, de poucas palavras, mas de tesouros escondidos no deserto do seu vocabulário.
           
Faz parte do evangelho popular nordestino, daquele tempo em que Jesus e seus discípulos passeavam pelo Nordeste, disfarçados. Essas histórias são, segundo defesa enfática da maioria, bem verdadeiras e eu fico pensando nos nossos mitos que veiculam verdades diferentes, mas muito mais reais do que as descrições lineares e ideológicas, por exemplo, do nosso jornalismo.
           
Jesus está acompanhado de São Pedro, e são na verdade dois velhinhos que batem à porta da cabana do pescador e pedem pousada. Hospitalidade, no nosso Nordeste antigo (e ainda um pouquinho no atual) é coisa sagrada e o pescador apresenta à mulher os pedidos.
           
A mulher, megera ranzinza e sovina, apesar dos conselhos do marido, encaminha os dois para uma esteira velha e na hora da refeição esconde o delicioso ensopado de Camurim e somente serve aos dois velhinhos umas piabinhas raquíticas e insossas.
           
O marido, tipo bondoso, hospitaleiro e trabalhador, multiplica-se em advertências e conselhos para a mulher, que não arreda pé e cumpre as promessas, horríveis promessas, diga-se de passagem.
           
Quando os dois velhinhos, na verdade Jesus e São Pedro, disfarçados, vão embora famintos e mal-dormidos, embora se desdobrando em agradecimentos, a mulher insensível retira o seu prato de Camurim e começa a saboreá-lo tranqüilamente, sob o olhar reprovador do bom marido.
           
E aí vem o engasgo, a sufocação, o medo da morte e o marido corre em busca do socorro dos dois velhinhos. Nesta hora, a súbita revelação. O antigo profeta e poeta popular palestino Jesus de Nazaré torna-se repentista nordestino e compõe a quadrinha abençoada, crítica e salvadora.

            Homem bom, mulher ruim
esteira velha, espinha de Camurim
           
A mulher está salva e o mal foi pago mais uma vez com o bem, porque o Jesus nordestino também distribui graça e saúde para bons e maus.
           
E eu volto da Vila Maravila cheio de graça, da graça de Jesus que vem da sabedoria truncada de Seu Dolivaldo e da graça desse povo que se apodera de histórias e de mitos que lhes vão forjando a estirpe e desenhando o caráter.
           
Quanta riqueza em uma simples história! Quanta descrição tipológica, quanta transmutação do cotidiano, quanta profundidade teológica! Viva Jesus e viva São Pedro, especialmente quando tiveram a brilhante idéia de se disfarçarem para produzir histórias e abençoar o povo simples e belo como o povo da Vila Maravila.

(Esse texto se encontra no livro “Vila Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Maria Quitéria, 2013, Feira de Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila Maravila: gols de esperança no campo da vida”)

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