quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Cremiro e os papéis.


ivoaffonso


Um dia antes de sua aposentadoria, Cremiro começou a rasgar papéis. Funcionário de quase trinta e cinco anos exemplares, ninguém até hoje sabe dizer porque ali, porque somente ali ou porque justamente ali fez o que fez. Acostumado a se esconder em sua escrivaninha atrás de uma pilha de papéis que destrinchava, arrumava, anotava, arquivava, devolvia, encaminhava, folha por folha, resolveu resolver de outro modo a questão cotidiana de sua pilha de documentos, e começou a rasgá-los um por um, com a treinada eficiência.
            
Não chegou mais cedo nem mais tarde nesse dia, que pontualidade e manchas de sol agarram-se à nossa pele com a força de um sanguessunga. Prêmios por cumprir horários tinha muitos, acompanhados de outros por cumprir requisitos específicos do bom funcionamento de um bom funcionário. 

Porque Cremiro, e todo o mundo com ele, sabia que era bom funcionário, daqueles que fazem funcionar o sistema tão bem que, em época de greves, o próprio comando sindical entrava em acordo com Cremiro para que este trabalhasse. Por via das dúvidas, a sua carreira de trabalhador poderia ser útil para os trabalhadores e não valia a pena arriscar. Porque Cremiro era, ao mesmo tempo, o mais fiel dos funcionários e o mais crítico do sistema, inclusive do sistema financeiro ao qual servia.
            
Funcionário que funcionava e bancário que podia botar banca mas não botava, Cremiro era figura humana e querida, quanto mais querido mais humano e quanto mais humano mais querido. Respeitado, os seus superiores o tratavam com distinção, e respeitador, tratava os subordinados com afeto bem-humorado. Em outras palavras, não havia em Cremiro nenhum traço, nenhuma mania estranha (se é que não é estranho ser tão perfeito) que desse qualquer motivo a qualquer pessoa para suspeitar do que aconteceria naquele fatídico dia e que começara exatamente às oito horas e dez minutos da manhã e somente começou a ser notado às onze e vinte do mesmo. Quem marcou tão precisamente o tempo? Gerlúcido, claro.
            
Nos fins de semana, quando não trabalhava tão perfeitamente o que Cremiro fazia? Nada, igual a todo trabalhador. Cerveja e futebol com a turma, passeio e cinema com a família, de convivência agradável, não falava demais nem de menos, o suficiente para garantir um bom círculo de amizades, com um repertório não exagerado das mesmas piadas ao qual acrescentava algumas novas, de muito vez em quando. Portanto, a perfeita rotina de um perfeito espião, mas sem os súbitos desaparecimentos e as curtas viagens dos tais.
            
Leituras? Esportes e filosofia. Talvez o único traço estranho de sua previsível personalidade. Mas, sejamos honestos, torcer pelo Náutico e gostar de Nietzsche é indício suficiente para qualquer tipo de suspeita? O dia era quinta-feira e não tinha havido nenhum jogo na véspera e, pelo que saiba, as pessoas não começam a rasgar documentos depois da leitura da Origem da Tragédia ou talvez porque não sabem onde se encontra em sua biblioteca seu preferido Assim Falava Zarathustra.
            
Foi o gerente quem descobriu que uma catástrofe sem precedentes na história bancária do país estava a caminho. Estranhando porque não havia recebido ainda alguns relatórios costumeiros, se encaminhou à sala onde Cremiro trabalhava, viu pelo vidro da porta a pilha que o escondia, entrou para perguntar sobre os relatórios e deparou-se, com um dos sorrisos mais abertos de Cremiro, com um surpreendente revólver que apontava para si e com um gesto silencioso que o convidava a sentar. 

Porque Cremiro não proferiu nenhuma palavra naquele dia, nem tentou se explicar ou avisar ou advertir ou pronunciar qualquer coisa. Por incrível que possa parecer, desde aquele dia e já se passaram dez anos do ocorrido, Cremiro não articula qualquer palavra e nenhum psiquiatra consultado quis se arriscar a pronunciá-lo doente.
            
Os sucessos posteriores são razoavelmente convergentes e vêm de diferentes testemunhos. Exageros e boatos são naturais, como os que afirmavam que Cremiro comia papéis – e babando alucinadamente, diziam – ou os de que esfregava os papéis descontroladamente no rosto do gerente, e outros dos gêneros. Os relatos mais confiáveis, se é que existem, garantem, porém, um ambiente tranqüilo em torno de Cremiro, e uma atividade contínua e equilibrada do mesmo, apenas rasgando papéis, cada um deles, um por um.
            
A polícia chegou por volta das três da tarde, acompanhada da televisão. A sala de Cremiro já tinha mais três colegas de trabalho, um cliente, e Cremiro permitiu que um câmera, a partir de então, televisionasse os acontecimentos, o que não significa muita coisa. Podemos assistir a exposição de imagens de cinco pessoas tensas sentadas em torno da mesa, um revólver ao alcance da mão de Cremiro, e a monótona atividade repetitiva de se rasgar papéis.
            
Ao silêncio de Cremiro, a polícia opôs todo o tipo de barulho. Cirenes na chegada, palavras gritadas em megafone, ameaças e promessas, alguns poucos impropérios e até disparos de balas (de festim, garantiram depois), inutilmente. Exatamente às cinco horas da tarde, rasgado o último dos documentos, Cremiro levantou-se, entregou a arma ao perplexo gerente, espreguiçou-se demoradamente e se sentou pacientemente à espera. Com a arma não convidada na mão, o gerente demorou a se decidir, mas, sem tirar os olhos atônitos do seu funcionário, deu instruções à sua secretária, ali envolvida, de como proceder.
            
Cremiro foi preso em flagrante e algemado e desde então jamais saiu da prisão, rejeitados todos habeas corpus requeridos por seus muitos advogados. Aqui as opiniões se dividem. Uns dizem que Cremiro não previra as conseqüências de seus atos, outros garantem que ele sabia exatamente o que lhe iria acontecer e outros afirmam que mesmo que soubesse ele faria tudo de novo. O fato é que, decorridos dez anos do acontecido, Cremiro já foi condenado a 325 anos de prisão e ainda não respondeu a todos os processos que tramitam contra os seus atos. 

Foi enquadrado em numerosos crimes, incluindo o costumeiro e estranho “formação de quadrilha” já que não encontraram ainda os seus companheiros nesse atentado, evidentemente ligado ao terrorismo internacional. Um dos seus crimes principais, destruição de patrimônio simbólico, foi considerado hediondo e inafiançável, convocado urgentemente o Congresso para alterar a Constituição para que nela coubesse tal crime e tais penas.
            
Decorridos dez anos, foram liberadas as primeiras visitas e Gerlúcido encontrou Cremiro meio abatido e um pouco alquebrado, sem nenhum sinal da antiga vitalidade que todos admiravam. Muitos jovens acompanharam com protestos a sua contínua condenação e fizeram dele o herói incontestável do próximo novo mundo de plantão. A turma comprou algumas camisetas com a foto de Cremiro e Gerlúcido foi vestido com uma delas ao presídio. As teorias sobre os seus motivos, as narrativas sobre a sua bravura memorável, a sua luta, que um jornalista inspirado denominou de quase não-violenta, tem tido uma repercussão de diversos tipos. Mas o silêncio de Cremiro é inquebrantável, apesar do quebrantamento de suas feições.
       
Quando Gerlúcido perguntou a Cremiro por que e se valeu a pena, o seu silêncio transformou-se em um sorriso aberto, puro, enigmático e interminável.

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