ivoaffonso |
Um
dia antes de sua aposentadoria, Cremiro começou a rasgar papéis. Funcionário de
quase trinta e cinco anos exemplares, ninguém até hoje sabe dizer porque ali,
porque somente ali ou porque justamente ali fez o que fez. Acostumado a se
esconder em sua escrivaninha atrás de uma pilha de papéis que destrinchava,
arrumava, anotava, arquivava, devolvia, encaminhava, folha por folha, resolveu
resolver de outro modo a questão cotidiana de sua pilha de documentos, e começou
a rasgá-los um por um, com a treinada eficiência.
Não
chegou mais cedo nem mais tarde nesse dia, que pontualidade e manchas de sol
agarram-se à nossa pele com a força de um sanguessunga. Prêmios por cumprir
horários tinha muitos, acompanhados de outros por cumprir requisitos
específicos do bom funcionamento de um bom funcionário.
Porque Cremiro, e todo
o mundo com ele, sabia que era bom funcionário, daqueles que fazem funcionar o
sistema tão bem que, em época de greves, o próprio comando sindical entrava em
acordo com Cremiro para que este trabalhasse. Por via das dúvidas, a sua
carreira de trabalhador poderia ser útil para os trabalhadores e não valia a
pena arriscar. Porque Cremiro era, ao mesmo tempo, o mais fiel dos funcionários
e o mais crítico do sistema, inclusive do sistema financeiro ao qual servia.
Funcionário
que funcionava e bancário que podia botar banca mas não botava, Cremiro era
figura humana e querida, quanto mais querido mais humano e quanto mais humano
mais querido. Respeitado, os seus superiores o tratavam com distinção, e
respeitador, tratava os subordinados com afeto bem-humorado. Em outras
palavras, não havia em Cremiro nenhum traço, nenhuma mania estranha (se é que
não é estranho ser tão perfeito) que desse qualquer motivo a qualquer pessoa
para suspeitar do que aconteceria naquele fatídico dia e que começara
exatamente às oito horas e dez minutos da manhã e somente começou a ser notado
às onze e vinte do mesmo. Quem marcou tão precisamente o tempo? Gerlúcido,
claro.
Nos
fins de semana, quando não trabalhava tão perfeitamente o que Cremiro fazia?
Nada, igual a todo trabalhador. Cerveja e futebol com a turma, passeio e cinema
com a família, de convivência agradável, não falava demais nem de menos, o
suficiente para garantir um bom círculo de amizades, com um repertório não
exagerado das mesmas piadas ao qual acrescentava algumas novas, de muito vez em
quando. Portanto, a perfeita rotina de um perfeito espião, mas sem os súbitos
desaparecimentos e as curtas viagens dos tais.
Leituras?
Esportes e filosofia. Talvez o único traço estranho de sua previsível
personalidade. Mas, sejamos honestos, torcer pelo Náutico e gostar de Nietzsche
é indício suficiente para qualquer tipo de suspeita? O dia era quinta-feira e
não tinha havido nenhum jogo na véspera e, pelo que saiba, as pessoas não
começam a rasgar documentos depois da leitura da Origem da Tragédia ou talvez porque não sabem onde se encontra em
sua biblioteca seu preferido Assim Falava
Zarathustra.
Foi
o gerente quem descobriu que uma catástrofe sem precedentes na história
bancária do país estava a caminho. Estranhando porque não havia recebido ainda
alguns relatórios costumeiros, se encaminhou à sala onde Cremiro trabalhava,
viu pelo vidro da porta a pilha que o escondia, entrou para perguntar sobre os
relatórios e deparou-se, com um dos sorrisos mais abertos de Cremiro, com um
surpreendente revólver que apontava para si e com um gesto silencioso que o
convidava a sentar.
Porque Cremiro não proferiu nenhuma palavra naquele dia,
nem tentou se explicar ou avisar ou advertir ou pronunciar qualquer coisa. Por
incrível que possa parecer, desde aquele dia e já se passaram dez anos do
ocorrido, Cremiro não articula qualquer palavra e nenhum psiquiatra consultado
quis se arriscar a pronunciá-lo doente.
Os
sucessos posteriores são razoavelmente convergentes e vêm de diferentes
testemunhos. Exageros e boatos são naturais, como os que afirmavam que Cremiro
comia papéis – e babando alucinadamente, diziam – ou os de que esfregava os
papéis descontroladamente no rosto do gerente, e outros dos gêneros. Os relatos
mais confiáveis, se é que existem, garantem, porém, um ambiente tranqüilo em
torno de Cremiro, e uma atividade contínua e equilibrada do mesmo, apenas
rasgando papéis, cada um deles, um por um.
A
polícia chegou por volta das três da tarde, acompanhada da televisão. A sala de
Cremiro já tinha mais três colegas de trabalho, um cliente, e Cremiro permitiu
que um câmera, a partir de então, televisionasse os acontecimentos, o que não
significa muita coisa. Podemos assistir a exposição de imagens de cinco pessoas
tensas sentadas em torno da mesa, um revólver ao alcance da mão de Cremiro, e a
monótona atividade repetitiva de se rasgar papéis.
Ao
silêncio de Cremiro, a polícia opôs todo o tipo de barulho. Cirenes na chegada,
palavras gritadas em megafone, ameaças e promessas, alguns poucos impropérios e
até disparos de balas (de festim, garantiram depois), inutilmente. Exatamente
às cinco horas da tarde, rasgado o último dos documentos, Cremiro levantou-se,
entregou a arma ao perplexo gerente, espreguiçou-se demoradamente e se sentou
pacientemente à espera. Com a arma não convidada na mão, o gerente demorou a se
decidir, mas, sem tirar os olhos atônitos do seu funcionário, deu instruções à
sua secretária, ali envolvida, de como proceder.
Cremiro
foi preso em flagrante e algemado e desde então jamais saiu da prisão,
rejeitados todos habeas corpus
requeridos por seus muitos advogados. Aqui as opiniões se dividem. Uns dizem
que Cremiro não previra as conseqüências de seus atos, outros garantem que ele
sabia exatamente o que lhe iria acontecer e outros afirmam que mesmo que
soubesse ele faria tudo de novo. O fato é que, decorridos dez anos do
acontecido, Cremiro já foi condenado a 325 anos de prisão e ainda não respondeu
a todos os processos que tramitam contra os seus atos.
Foi enquadrado em
numerosos crimes, incluindo o costumeiro e estranho “formação de quadrilha” já
que não encontraram ainda os seus companheiros nesse atentado, evidentemente
ligado ao terrorismo internacional. Um dos seus crimes principais, destruição de patrimônio simbólico, foi
considerado hediondo e inafiançável, convocado urgentemente o Congresso para
alterar a Constituição para que nela coubesse tal crime e tais penas.
Decorridos
dez anos, foram liberadas as primeiras visitas e Gerlúcido encontrou Cremiro
meio abatido e um pouco alquebrado, sem nenhum sinal da antiga vitalidade que
todos admiravam. Muitos jovens acompanharam com protestos a sua contínua
condenação e fizeram dele o herói incontestável do próximo novo mundo de
plantão. A turma comprou algumas camisetas com a foto de Cremiro e Gerlúcido
foi vestido com uma delas ao presídio. As teorias sobre os seus motivos, as
narrativas sobre a sua bravura memorável, a sua luta, que um jornalista
inspirado denominou de quase não-violenta,
tem tido uma repercussão de diversos tipos. Mas o silêncio de Cremiro é
inquebrantável, apesar do quebrantamento de suas feições.
Quando
Gerlúcido perguntou a Cremiro por que e
se valeu a pena, o seu silêncio
transformou-se em um sorriso aberto, puro, enigmático e interminável.
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