quinta-feira, 25 de julho de 2013

Uma reunião dos leitólicos anônimos

planetasercomtel 


Desde que a OMS definiu recentemente como doença o hábito compulsivo de leitura, o combate a essa epidemia tem assumido o noticiário dos principais jornais do mundo. Os portadores da síndrome (CRS – Compulsive Reading Syndhrome) têm acompanhado com desesperado interesse os debates sobre a deformante enfermidade. Genética ou adquirida? Biológica ou psíquica? Contagiosa ou não contagiosa?

Os laboratórios divulgam a descoberta de poderosas drogas que combatem, segundo os mesmos, eficientemente a doença, mas não há dúvida de que os grupos de ajuda, que se espalham rapidamente pelo mundo todo, têm sido o instrumento mais eficaz de combate à CRS e aos seus danosos efeitos. O movimento dos LA, leitólicos anônimos, tem difundido e aplicado os seus princípios e encontrado seguidores fiéis em todos os lugares. Na verdade, eu mesmo tenho encontrado consolo e forte auxílio em um desses grupos e, se não me encontro curado, percebo pequenos sinais de desaceleração da doença em meu organismo.

Na última reunião, participamos de momentos realmente inspiradores. Nosso líder, integrante de conhecida banda de rock, faz exatamente nove anos, quarenta e três dias e cinco minutos que não lê absolutamente nada e com sua vasta experiência nos orienta em exercícios e atitudes práticas para combater o terrível mal. A reunião se estrutura em torno de testemunhos pessoais, seguidos de incentivos mútuos, e a base principal do nosso esforço é a certeza de que uma vez leitólico sempre leitólico. O caráter incurável da nossa doença tem ficado cada vez mais evidente para todos os portadores e nos levado a atitudes sempre mais radicais.

Os trinta afiliados de nosso grupo apresentam as mesmas características físicas, emocionais e sociais que são atribuídas aos portadores de CRS. Faces pálidas, olhos fundos e fixos sobre o vazio, cabelos desgrenhados (quando há cabelos), tremores nos lábios e nas mãos, gagueira e incapacidade de articulação, hábitos melancólicos e associais. Suas histórias pessoais e familiares são descrições de fracassadas expectativas, de conflitos afetivos e existenciais, de crises financeiras avassaladoras, de progressivas degenerações em seus diversos relacionamentos familiares, trabalhistas e comunitários. O grupo se constitui diante deles em forte fator de estimulação e de redirecionamento de vida.

Os testemunhos foram diversos. Alguns jovens e adolescentes iniciantes falaram do seu grande amor pela leitura e da falta de dinheiro para comprar livros e foram fortemente repreendidos pelo líder. Precisavam entender que se tratava de uma doença e de que não se pode amar uma deficiência. Tem de haver um firme propósito de nunca se olhar para um livro, de nunca se entrar em uma livraria, de nunca se perder em devaneios onde livros estejam presentes. Uma vez leitólico sempre leitólico. O livro cria dependência biológica, química e psíquica e é preciso cortar-lhe totalmente o acesso para se viver bem.

Houve a palavra de um jovem pai de família. Face pálida, corpo alquebrado pelas intermináveis e incontroláveis horas de leitura, quatro filhos pequenos, sendo o mais jovem portador de uma doença crônica. Saíra de casa com trezentos reais para fazer a feira, onde estaria incluído leite e remédio especial para o mais novo, quando se deparou com uma livraria e com toda a crise subseqüente. Só quem sofre da doença pode imaginar a situação. Com esforço sobrehumano conseguira comprar apenas duzentos reais de livros, levando para casa metade do leite esperado e um quarto do remédio do mais novo. A feira teria de esperar por melhor ocasião. Sua narrativa, atentamente acompanhada, foi bastante aplaudida e palavras de apoio e de incentivo diziam-lhe que estava no caminho certo. Era mesmo preciso lutar.

Mas a palavra mais importante fora a de um senhor de meia idade, antigo freqüentador das reuniões, que comparecia com uma nova expressão de fogo no seu olhar. Viera para se despedir e repetia emocionado para uma emocionada platéia que finalmente conseguira. Havia já três meses que não lia nada e tinha certeza de que jamais voltaria ao deplorável hábito. Sua esposa estava em paz e seus filhos o tratavam com um inesperado carinho. Seus vizinhos o olhavam com mais dignidade e ele mesmo se sentia mais digno e mais útil para a sociedade. Nunca mais tivera os problemas financeiros que costumam abalar o mais sólido dos relacionamentos. À medida que falava, os companheiros se suspendiam eletrizados de suas cadeiras, como que atraídos pelo seu sucesso e ávidos de uma explicação ou de uma fórmula mágica. Mas não havia mágica, debaixo de ensurdecedores aplausos revelara ao auditório o seu segredo: voltara a beber. Simples assim; e definitivamente mais digno.

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