Desde que a OMS definiu
recentemente como doença o hábito compulsivo de leitura, o combate a essa
epidemia tem assumido o noticiário dos principais jornais do mundo. Os
portadores da síndrome (CRS – Compulsive
Reading Syndhrome) têm acompanhado com desesperado interesse os debates
sobre a deformante enfermidade. Genética ou adquirida? Biológica ou psíquica?
Contagiosa ou não contagiosa?
Os laboratórios divulgam a
descoberta de poderosas drogas que combatem, segundo os mesmos, eficientemente
a doença, mas não há dúvida de que os grupos de ajuda, que se espalham
rapidamente pelo mundo todo, têm sido o instrumento mais eficaz de combate à
CRS e aos seus danosos efeitos. O movimento dos LA, leitólicos anônimos, tem difundido e aplicado os seus princípios e
encontrado seguidores fiéis em todos os lugares. Na verdade, eu mesmo tenho
encontrado consolo e forte auxílio em um desses grupos e, se não me encontro
curado, percebo pequenos sinais de desaceleração da doença em meu organismo.
Na última reunião, participamos
de momentos realmente inspiradores. Nosso líder, integrante de conhecida banda
de rock, faz exatamente nove anos, quarenta e três dias e cinco minutos que não
lê absolutamente nada e com sua vasta experiência nos orienta em exercícios e
atitudes práticas para combater o terrível mal. A reunião se estrutura em torno
de testemunhos pessoais, seguidos de incentivos mútuos, e a base principal do
nosso esforço é a certeza de que uma vez leitólico sempre leitólico. O caráter
incurável da nossa doença tem ficado cada vez mais evidente para todos os
portadores e nos levado a atitudes sempre mais radicais.
Os trinta afiliados de nosso
grupo apresentam as mesmas características físicas, emocionais e sociais que
são atribuídas aos portadores de CRS. Faces pálidas, olhos fundos e fixos sobre
o vazio, cabelos desgrenhados (quando há cabelos), tremores nos lábios e nas
mãos, gagueira e incapacidade de articulação, hábitos melancólicos e associais.
Suas histórias pessoais e familiares são descrições de fracassadas
expectativas, de conflitos afetivos e existenciais, de crises financeiras
avassaladoras, de progressivas degenerações em seus diversos relacionamentos
familiares, trabalhistas e comunitários. O grupo se constitui diante deles em
forte fator de estimulação e de redirecionamento de vida.
Os testemunhos foram diversos.
Alguns jovens e adolescentes iniciantes falaram do seu grande amor pela leitura
e da falta de dinheiro para comprar livros e foram fortemente repreendidos pelo
líder. Precisavam entender que se tratava de uma doença e de que não se pode
amar uma deficiência. Tem de haver um firme propósito de nunca se olhar para um
livro, de nunca se entrar em uma livraria, de nunca se perder em devaneios onde
livros estejam presentes. Uma vez
leitólico sempre leitólico. O livro cria dependência biológica, química e
psíquica e é preciso cortar-lhe totalmente o acesso para se viver bem.
Houve a palavra de um jovem pai
de família. Face pálida, corpo alquebrado pelas intermináveis e incontroláveis
horas de leitura, quatro filhos pequenos, sendo o mais jovem portador de uma
doença crônica. Saíra de casa com trezentos reais para fazer a feira, onde
estaria incluído leite e remédio especial para o mais novo, quando se deparou
com uma livraria e com toda a crise subseqüente. Só quem sofre da doença pode
imaginar a situação. Com esforço sobrehumano conseguira comprar apenas duzentos
reais de livros, levando para casa metade do leite esperado e um quarto do
remédio do mais novo. A feira teria de esperar por melhor ocasião. Sua
narrativa, atentamente acompanhada, foi bastante aplaudida e palavras de apoio
e de incentivo diziam-lhe que estava no caminho certo. Era mesmo preciso lutar.
Mas a palavra mais importante fora a de um senhor de
meia idade, antigo freqüentador das reuniões, que comparecia com uma nova
expressão de fogo no seu olhar. Viera para se despedir e repetia emocionado
para uma emocionada platéia que finalmente conseguira. Havia já três meses que
não lia nada e tinha certeza de que jamais voltaria ao deplorável hábito. Sua
esposa estava em paz e seus filhos o tratavam com um inesperado carinho. Seus
vizinhos o olhavam com mais dignidade e ele mesmo se sentia mais digno e mais
útil para a sociedade. Nunca mais tivera os problemas financeiros que costumam
abalar o mais sólido dos relacionamentos. À medida que falava, os companheiros
se suspendiam eletrizados de suas cadeiras, como que atraídos pelo seu sucesso
e ávidos de uma explicação ou de uma fórmula mágica. Mas não havia mágica,
debaixo de ensurdecedores aplausos revelara ao auditório o seu segredo: voltara
a beber. Simples assim; e definitivamente mais digno.
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