quarta-feira, 24 de julho de 2013

A única missa

miguelgarciapoeta.blogspot

Todas as terças-feiras, à tardinha, meus sonhos rejuvenescem e meu coração se aquieta através do repetido ritual da comida partilhada na casa de Mãe Silícia. 

Nesses momentos, diante do mesmo cheiroso e saboroso café e do mesmo pão com ovo frito, penetro na milenar tradição das sagradas refeições de todos os tempos e quase posso entender os antigos. Para estes, toda refeição era realizada na presença dos seus deuses e dos seus antepassados. Na casa de Mãe Silícia, partilhamos juntos o mistério da presença de Deus e da sabedoria popular, transmitida oralmente nos diversos e diferentes rituais da vida, e é como se o próprio Deus e diversas personagens da história provassem também gravemente daquele café.

Nesta semana, Mãe Silícia nos trouxe uma história.  Religiosa história nordestina de um imaginário mítico onde Jesus, apóstolos, anjos e também o demônio passeiam pelas veredas do sertão ou pelas ruas da cidade grande, em um delicado colóquio entre o sagrado e o cotidiano.

Determinado vaqueiro fizera solenemente a promessa de assistir a duzentas missas da comunidade, sem interromper por motivo nenhum a freqüência, e assim o fez. Para controlar a promessa, a cada missa que assistia colocava uma pedra redonda e lisa em um velho toco de árvore, restos de um grande e famoso cajueiro da região. 

Tendo mantido fervorosamente a promessa por muito tempo, em um belo domingo deparou-se com uma cena que o deixou em difícil situação. No caminho da Igreja, um velho, pobre e desconhecido mendigo, jazia no chão todo ensangüentado. Sem tempo para raciocinar e totalmente esquecido da promessa, tomou o ancião nos braços,  sujando sua roupa domingueira, e levou-o ansioso à casa do médico do lugarejo que conseguiu salvar a vida do pedinte.

Somente depois lembrou-se da promessa. À noite, depois de um dia de profundo desespero, sonhou que Jesus lhe aparecia, conduzia-lhe silenciosamente até o toco do cajueiro e lhe pedia que prestasse contas da promessa. O vaqueiro, desolado, debruça-se sobre o toco e procura para se explicar todas as pedras ali depositadas e surpreso encontra apenas uma pedra.

Nesse momento acontece a surpreendente revelação.  Jesus lhe explica tranqüilamente que essa fora a única missa que realmente recebera. O velho mendigo ferido teria sido o próprio Jesus que, disfarçado, vem à terra para testar os seus seguidores e o vaqueiro passara plenamente no teste.  Ele, Jesus, não precisava de duzentas missas, a única missa de que precisava era exatamente a missa da ajuda aos desprezados e aos esquecidos da sociedade: a missa da justiça e da solidariedade.

Que poderia eu dizer depois dessa história?  Somente pude lembrar do bíblico vaqueiro profeta Amós, saindo do campo e caminhando pelas ruas da cidade grande, gritando que mais do que de culto, de cânticos e de orações empoladas, Deus se agradava era mesmo da realização da justiça. E o texto que me ocorreu foi “Antes corra o juízo como as águas e a justiça como ribeiro perene”  Amós 5, 23.


Vivemos momentos de muito misticismo e de muita religiosidade, onde abundam cultos com coreografias exóticas e onde a busca por expressões litúrgicas parece ser mais importante do que o resgate do compromisso ético.  Diante disso, talvez seja necessário aprender a construir artesanalmente com Mãe Silícia uma teologia do toco do cajueiro e a restaurar uma antiga liturgia: exatamente a liturgia da justiça e da solidariedade.

(Esse texto se encontra no livro “Vila Maravila: um lugar diferente e cheio de graça”. O livro pode ser adquirido em contato com o autor ou na Livraria Nobel, Av. Getúlio Vargas, 2410, Feira de Santana – BA. Da mesma maneira você pode encontrar o segundo volume: “Vila Maravila: gols de esperança no campo da vida”)

Um comentário:

  1. Amei! Vou postar na página do IJEPAVI, instituição que `Paulo criou e preside.

    ResponderExcluir