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O gramado é uma entidade divina
que deve ser acariciada com os pés por artistas da bola e nunca, nunca,
ofendido por cavalgadores do futebol, incapazes de entender a sensibilidade de
um jogo criado para, mais do que entreter, despertar paixões e compromissos
radicais.
Ninguém pode se admirar,
portanto, de sua irritação recorrente, especialmente quando, na nostalgia da
saudade de antológicos sacerdotes, personalidades místicas que percorreram suas
dimensões, depara-se com aficionados irreverentes, crente vulgares que,
desatentos, tropeçam nos rituais.
Paciente no início, pode ir se
exasperando à medida que o lançamento precipitado faz a bola escorrer pela
linha de fundo ou ser cortada pelo zagueiro, e o resfolegante velocista,
frustrado com a corrida indevida e a bola que chega sempre ou antes demais ou
depois demais, desperta a saudade de Didi, Gerson ou Marcelinho Carioca.
Mas o jogo vai seguindo e os
esforçados jogadores, talvez mais esforçados que jogadores, vão se revezando em
demonstração da capacidade de exibir a própria incapacidade, tropeçando na bola
e no gramado, divindade desprezada, até magnânimo no desejo de perdoar, mas um
tanto ou quanto arrepiado por vulgaridades de heresias futebolísticas.
Como divindade, não toma partido,
mas se alimenta da reverência e da elegância de quem consegue desenvolver a
liturgia com o zelo do crente praticante, incansável em sua fé e cuidadoso na
execução dos exercícios espirituais. Tardio em irar-se, põe-se à disposição dos
novatos, iniciantes em tradições tão complexas (admite), especialmente daqueles
que aparentam se encaminhar para a iluminação, algum dia.
Sente-se agraciado com uma finta
bem feita, com um lance criativo e inesperado, e se oferece benevolente ao passo
cadenciado desse adorador. Conhece, porém, a sua impaciência, aquele zagueiro
inseguro e indelicado, ofensivo em suas maneiras apressadas, atabalhoado em sua
ânsia de interromper a jogada. Para esses se põe como obstáculo, de modo sutil,
às vezes, mas em não raros momentos como vontade punitiva que joga ao chão o
infiel.
Pleno de lances bisonhos para
apenas alguns poucos momentos de um realmente bom futebol, a partida segue se
arrastando e sua divindade, o gramado, começa a mostrar crescente indignação. O
jogo não está se desenrolando dentro dos cânones e, se todos participam do
frustrante espetáculo, alguns são intoleráveis em seu insolente desrespeito.
De tal maneira que, sua divindade
o gramado, resolve abandonar a sua passividade e intervir. E no final de um
melancólico jogo que terminaria em inevitável zero a zero, aquele desastrado
zagueiro, marcador que não se sabe marcado por sua divindade, resolve atrasar
devagar, mas levianamente uma bola para o goleiro. E quando a pelota já se
prepara para ser mansamente acolhida pelas mãos do experiente guardião, sua
divindade, o gramado, exasperado e divertido ao mesmo tempo, dá-lhe um súbito
piparote e a bola se desvia rapidamente para os fundos da rede.
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