quinta-feira, 18 de julho de 2013

Sua divindade, o gramado.



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O gramado é uma entidade divina que deve ser acariciada com os pés por artistas da bola e nunca, nunca, ofendido por cavalgadores do futebol, incapazes de entender a sensibilidade de um jogo criado para, mais do que entreter, despertar paixões e compromissos radicais.

Ninguém pode se admirar, portanto, de sua irritação recorrente, especialmente quando, na nostalgia da saudade de antológicos sacerdotes, personalidades místicas que percorreram suas dimensões, depara-se com aficionados irreverentes, crente vulgares que, desatentos, tropeçam nos rituais.

Paciente no início, pode ir se exasperando à medida que o lançamento precipitado faz a bola escorrer pela linha de fundo ou ser cortada pelo zagueiro, e o resfolegante velocista, frustrado com a corrida indevida e a bola que chega sempre ou antes demais ou depois demais, desperta a saudade de Didi, Gerson ou Marcelinho Carioca.
           
Mas o jogo vai seguindo e os esforçados jogadores, talvez mais esforçados que jogadores, vão se revezando em demonstração da capacidade de exibir a própria incapacidade, tropeçando na bola e no gramado, divindade desprezada, até magnânimo no desejo de perdoar, mas um tanto ou quanto arrepiado por vulgaridades de heresias futebolísticas.
           
Como divindade, não toma partido, mas se alimenta da reverência e da elegância de quem consegue desenvolver a liturgia com o zelo do crente praticante, incansável em sua fé e cuidadoso na execução dos exercícios espirituais. Tardio em irar-se, põe-se à disposição dos novatos, iniciantes em tradições tão complexas (admite), especialmente daqueles que aparentam se encaminhar para a iluminação, algum dia.
           
Sente-se agraciado com uma finta bem feita, com um lance criativo e inesperado, e se oferece benevolente ao passo cadenciado desse adorador. Conhece, porém, a sua impaciência, aquele zagueiro inseguro e indelicado, ofensivo em suas maneiras apressadas, atabalhoado em sua ânsia de interromper a jogada. Para esses se põe como obstáculo, de modo sutil, às vezes, mas em não raros momentos como vontade punitiva que joga ao chão o infiel.
           
Pleno de lances bisonhos para apenas alguns poucos momentos de um realmente bom futebol, a partida segue se arrastando e sua divindade, o gramado, começa a mostrar crescente indignação. O jogo não está se desenrolando dentro dos cânones e, se todos participam do frustrante espetáculo, alguns são intoleráveis em seu insolente desrespeito.
           
De tal maneira que, sua divindade o gramado, resolve abandonar a sua passividade e intervir. E no final de um melancólico jogo que terminaria em inevitável zero a zero, aquele desastrado zagueiro, marcador que não se sabe marcado por sua divindade, resolve atrasar devagar, mas levianamente uma bola para o goleiro. E quando a pelota já se prepara para ser mansamente acolhida pelas mãos do experiente guardião, sua divindade, o gramado, exasperado e divertido ao mesmo tempo, dá-lhe um súbito piparote e a bola se desvia rapidamente para os fundos da rede.


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