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Quando
percebeu que não eram as mãos macias e os pés delicados de Madame, o automóvel
sofreu uma brusca queda de humor, mas rapidamente reagiu e recuperou a sua
costumeira jovialidade. Viajamos normalmente, bem normalmente, contentes com a
sua total boa vontade e até achando graça do seu jeito irônico quando freávamos
abruptamente ou quando enfrentávamos um tanto ou quanto indelicadamente um
buraco imprevisto ou uma prevista lombada.
Com quase um ano de idade, acostumado diariamente ao
finíssimo, educado e aristocrático trato que Madame lhe dispensava, seria até
de se esperar que o elegante veículo expressasse de uma maneira bem mais
veemente o seu desagrado. Mas não. Até aquele momento, somente Madame o conduzira
e fora contaminado por seu porte, conduta e espírito aristocráticos e
seria preciso, na primeira ausência de
Madame, manter o equilíbrio e causar boa impressão, exatamente em homenagem
àquela que se havia tornado o seu modelo de vida.
O primeiro choque aconteceu quando descobriu para
onde estava sendo levado. A imensa feira livre não seria bem o ambiente a que
estava acostumado e as pessoas que ali se acotovelavam praticavam um tipo de
etiqueta a que não estava afeito. O golpe final foi quando começou a receber,
em suas costas, pesados sacos, carregados de frutas, verduras e legumes. Nunca
imaginara que isso aconteceria consigo, até por ser um carro pequeno, projetado
para as pequenas viagens e para o transporte de pessoas e nunca para carga e
ainda mais carga pesada.
Na volta, vinha cabisbaixo e pensativo, em um
turbilhão de sentimentos, em um contínuo desencontro de emoções. De mordomo a
estivador, perdera repentinamente toda a pose, como um ator que desarma o
sorriso ao entrar no camarim. Percebeu-se velho e adivinhou que nunca mais
andaria com Madame que, sabia, detestava o cheiro que a feira lhe deixava.
Foi difícil, mas terminou se acostumando comigo e
hoje podemos até dizer que somos bons companheiros. Algumas vezes, julgo até
que cantarola e em outras, surpreendo-lhe um ligeiro sorriso como se lembrasse
as mãos macias e algum dito espirituoso de Madame. Tornou-se desleixado, é
verdade, nunca mais a forma impecável com que se apresentava anteriormente. Mas,
às vezes, até penso que se sente feliz assim e que talvez isso signifique
maturidade.
Quando voltamos da feira, exatamente nos momentos em
que parece mais velho e cansado, às vezes até gemendo baixinho com o peso das
coisas e da vida, observo-o de soslaio e penso que, surpreendentemente, volta a
se parecer com o antigo mordomo de Madame. Parece reunir todas as forças que
lhe restam e assumir um ar de estóica dignidade, como se, ao cumprir tarefas
acima de suas forças e totalmente fora dos seus projetos pessoais, recuperasse
teimosamente a sua verdadeira identidade.
Em casa, novamente uma crise. Madame,
insensivelmente feliz com o carro novo. Ondas de ódio, dor, autopiedade,
frustração, ciúme e, logo depois, pouco a pouco, novamente a calma, a
resignação e (posso quase garantir) o prolongado suspiro de quem admite que a
vida é assim mesmo e assim mesmo é a vida, mas que é preciso seguir e seguimos.
Cada um de nós com o seu passado, cada qual com as suas dores, enfrentamos, corajosamente,
a nossa própria e respectiva vida e o nosso apropriado e respectivo futuro.
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