quinta-feira, 11 de julho de 2013

O envelhecimento precoce do automóvel de Madame

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Quando percebeu que não eram as mãos macias e os pés delicados de Madame, o automóvel sofreu uma brusca queda de humor, mas rapidamente reagiu e recuperou a sua costumeira jovialidade. Viajamos normalmente, bem normalmente, contentes com a sua total boa vontade e até achando graça do seu jeito irônico quando freávamos abruptamente ou quando enfrentávamos um tanto ou quanto indelicadamente um buraco imprevisto ou uma prevista lombada.

Com quase um ano de idade, acostumado diariamente ao finíssimo, educado e aristocrático trato que Madame lhe dispensava, seria até de se esperar que o elegante veículo expressasse de uma maneira bem mais veemente o seu desagrado. Mas não. Até aquele momento, somente Madame o conduzira e fora contaminado por seu porte, conduta e espírito aristocráticos e seria  preciso, na primeira ausência de Madame, manter o equilíbrio e causar boa impressão, exatamente em homenagem àquela que se havia tornado o seu modelo de vida.

O primeiro choque aconteceu quando descobriu para onde estava sendo levado. A imensa feira livre não seria bem o ambiente a que estava acostumado e as pessoas que ali se acotovelavam praticavam um tipo de etiqueta a que não estava afeito. O golpe final foi quando começou a receber, em suas costas, pesados sacos, carregados de frutas, verduras e legumes. Nunca imaginara que isso aconteceria consigo, até por ser um carro pequeno, projetado para as pequenas viagens e para o transporte de pessoas e nunca para carga e ainda mais carga pesada.

Na volta, vinha cabisbaixo e pensativo, em um turbilhão de sentimentos, em um contínuo desencontro de emoções. De mordomo a estivador, perdera repentinamente toda a pose, como um ator que desarma o sorriso ao entrar no camarim. Percebeu-se velho e adivinhou que nunca mais andaria com Madame que, sabia, detestava o cheiro que a feira lhe deixava.

Foi difícil, mas terminou se acostumando comigo e hoje podemos até dizer que somos bons companheiros. Algumas vezes, julgo até que cantarola e em outras, surpreendo-lhe um ligeiro sorriso como se lembrasse as mãos macias e algum dito espirituoso de Madame. Tornou-se desleixado, é verdade, nunca mais a forma impecável com que se apresentava anteriormente. Mas, às vezes, até penso que se sente feliz assim e que talvez isso signifique maturidade.

Quando voltamos da feira, exatamente nos momentos em que parece mais velho e cansado, às vezes até gemendo baixinho com o peso das coisas e da vida, observo-o de soslaio e penso que, surpreendentemente, volta a se parecer com o antigo mordomo de Madame. Parece reunir todas as forças que lhe restam e assumir um ar de estóica dignidade, como se, ao cumprir tarefas acima de suas forças e totalmente fora dos seus projetos pessoais, recuperasse teimosamente a sua verdadeira identidade.


Em casa, novamente uma crise. Madame, insensivelmente feliz com o carro novo. Ondas de ódio, dor, autopiedade, frustração, ciúme e, logo depois, pouco a pouco, novamente a calma, a resignação e (posso quase garantir) o prolongado suspiro de quem admite que a vida é assim mesmo e assim mesmo é a vida, mas que é preciso seguir e seguimos. Cada um de nós com o seu passado, cada qual com as suas dores, enfrentamos, corajosamente, a nossa própria e respectiva vida e o nosso apropriado e respectivo futuro.


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