terça-feira, 30 de julho de 2013

A variedade linguística do campo de futebol.

 
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A língua é um rio caudaloso, em permanente movimento e devir, para onde confluem variados dialetos, um complexo de afluentes que derramam as suas águas nesse único idioma que a todos pertence e que a ninguém discrimina. Do ponto de vista puramente lingüístico, portanto, não existe erro ou vício de linguagem, a não ser quando se rompe a estrutura básica da construção de frases do idioma. O que existem, na verdade, são variedades e variantes lingüísticas diante de um ou mais padrões idiomáticos arbitrados.

Sabia de tudo isso quando entrei no estádio de futebol para assistir a um clássico local, mas me senti um verdadeiro estrangeiro,  estranho e triste estrangeiro em meu próprio país. E logo diante de uma partida de futebol! eu que sou apaixonado torcedor, condenado a ser tricolor até a eternidade! Ausente dos estádios por contingências, nunca por opção, não tive a oportunidade de aprender o dialeto que ali se fala e que hoje é indispensável para qualquer aficionado do esporte que esteja disposto a freqüentar os campos onde se pratica o futebol sem os cortes e as edições dos meios de comunicação.

A variedade que ali se fala, todo o mundo sabe, é uma variedade de uma variedade obscena do jogo de linguagem de baixo calão que a gente aprende desde pequeno, mas que não fica bem falar. A não ser em ocasiões muito especiais, como susto, raiva, dor, topadas e coincidências súbitas (como quando uma inocentíssima e graciosa criança espirra em sua camisa nova), raramente utilizamos o padrão obsceno do qual a variante do campo de futebol constitui-se em específico dialeto.

O problema maior, além da amplidão vocabular, do extraordinário número de verbetes que se fala naquele ambiente, são as nuances, as relações, as expressões idiomáticas e as características especificas de cada um dos vocábulos. Tanto mais afoito quanto mais inexperiente, xinguei bandeirinha com palavrão de juiz e juiz com palavrão de técnico, para desespero da torcida a meu redor que passou a me olhar com hostil desconfiança.

Os desencontros se sucederam durante todo o primeiro tempo. Depois de um lance bisonho, chamei o craque do time de delicado espécime sexual enquanto a torcida aplaudia o seu esforço. Depois da marcação de um impedimento, ofendi a mãe do juiz quando o correto seria ofender a sua esposa. Depois de um gesto obsceno para a torcida adversária, quase fui agredido por um torcedor do meu time porque outro era o gesto adequado. Porque além da difícil linguagem falada, precisa-se aprender ainda toda a dificílima linguagem gestual.

Consegui me portar melhor no segundo tempo porque tive a assessoria gramatical de uma distinta e amável senhora, visivelmente penalizada. Ela me adiantava baixinho a palavra ou o gesto adequados e quando havia tempo ainda me explicava os motivos teóricos, étnicos e gramaticais de tal ou qual aplicação. Por causa disso, podíamos gritar juntos, com todos os nossos pulmões e todo o entusiasmo de nossos corações, os substantivos, adjetivos, verbos e expressões, lingüisticamente adequados a cada situação concreta e expressar gestualmente nosso desprezo, indignação ou comiseração para com os torcedores adversários.

Ainda faltava uma coisa. Não admitia vir a campo sem participar do grande momento artístico em que todos ofendíamos veementemente a genitora do meretríssimo  senhor juiz de futebol. Mas a senhora ao lado me acalmava: “Não,  uma inversão de lateral é muito pouco para se xingar a mãe do juiz”. De repente, porém, pênalti marcado contra nós. Se eu não fosse torcedor, poderia até admitir que o nosso zagueiro não pode derrubar com uma tesoura por trás o atacante adversário. Mas não, era o meu time e o mal nascido juiz tivera a coragem de marcar um pênalti contra nós. Minha bem graduada assessora, fora de si, esquecera de me avisar. Mas não precisava. Todos juntos, em uma reação visceral, formamos um magnífico coro e, em uníssono, ofendemos a distinta, vetusta, digna e anônima senhora que tivera a coragem de não abortar essa disforme e asquerosa criatura que se veste sempre de preto, emite esquisitos sons pela boca e somente rouba para o time adversário..

Depois desse momento, percebi, quase terminada a partida e quase perdido o jogo, que o idioma estava totalmente liberado e explodia no estádio em toda a sua pujança e vitalidade. Todos podiam ser ofendidos com qualquer nome e por qualquer motivo. Até o craque do time, correndo apoplético por todos os cantos do gramado, recebia todo o tipo de epíteto, sendo inclusive comparado àquele estranho e suspeito animal que exibe galhos na cabeça. Não podia deixar de admirar a senhora ao lado que demonstrava constantemente os seus conhecimentos e exercitava competentemente a sua fluência idiomática.

De volta para casa, torcedor derrotado, consolava-me extasiado com a grandeza e possibilidades de nosso imenso e surpreendente idioma. Têm toda a razão aqueles que defendem que devemos estudar mais acuradamente a nossa própria língua e eu estou fortemente determinado a isso. Firmei o propósito, inclusive, de jamais voltar a um estádio, sem antes participar de um curso intensivo da nossa língua pátria, especialmente de algum que tenha em seu currículo o extraordinário e exuberante dialeto do campo de futebol.

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