A língua é um rio
caudaloso, em permanente movimento e devir, para onde confluem variados
dialetos, um complexo de afluentes que derramam as suas águas nesse único
idioma que a todos pertence e que a ninguém discrimina. Do ponto de vista
puramente lingüístico, portanto, não existe erro ou vício de linguagem, a não
ser quando se rompe a estrutura básica da construção de frases do idioma. O que
existem, na verdade, são variedades e variantes lingüísticas diante de um ou
mais padrões idiomáticos arbitrados.
Sabia de tudo isso quando
entrei no estádio de futebol para assistir a um clássico local, mas me senti um
verdadeiro estrangeiro, estranho e
triste estrangeiro em meu próprio país. E logo diante de uma partida de
futebol! eu que sou apaixonado torcedor, condenado a ser tricolor até a
eternidade! Ausente dos estádios por contingências, nunca por opção, não tive a
oportunidade de aprender o dialeto que ali se fala e que hoje é indispensável
para qualquer aficionado do esporte que esteja disposto a freqüentar os campos
onde se pratica o futebol sem os cortes e as edições dos meios de comunicação.
A variedade que ali se
fala, todo o mundo sabe, é uma variedade de uma variedade obscena do jogo de
linguagem de baixo calão que a gente aprende desde pequeno, mas que não fica
bem falar. A não ser em ocasiões muito especiais, como susto, raiva, dor, topadas
e coincidências súbitas (como quando uma inocentíssima e graciosa criança
espirra em sua camisa nova), raramente utilizamos o padrão obsceno do qual a
variante do campo de futebol constitui-se em específico dialeto.
O problema maior, além da
amplidão vocabular, do extraordinário número de verbetes que se fala naquele
ambiente, são as nuances, as relações, as expressões idiomáticas e as
características especificas de cada um dos vocábulos. Tanto mais afoito quanto
mais inexperiente, xinguei bandeirinha com palavrão de juiz e juiz com palavrão
de técnico, para desespero da torcida a meu redor que passou a me olhar com
hostil desconfiança.
Os desencontros se
sucederam durante todo o primeiro tempo. Depois de um lance bisonho, chamei o
craque do time de delicado espécime
sexual enquanto a torcida aplaudia o seu esforço. Depois da marcação de um
impedimento, ofendi a mãe do juiz quando o correto seria ofender a sua esposa. Depois
de um gesto obsceno para a torcida adversária, quase fui agredido por um
torcedor do meu time porque outro era o gesto adequado. Porque além da difícil
linguagem falada, precisa-se aprender ainda toda a dificílima linguagem
gestual.
Consegui me portar melhor
no segundo tempo porque tive a assessoria gramatical de uma distinta e amável
senhora, visivelmente penalizada. Ela me adiantava baixinho a palavra ou o
gesto adequados e quando havia tempo ainda me explicava os motivos teóricos, étnicos
e gramaticais de tal ou qual aplicação. Por causa disso, podíamos gritar
juntos, com todos os nossos pulmões e todo o entusiasmo de nossos corações, os
substantivos, adjetivos, verbos e expressões, lingüisticamente adequados a cada
situação concreta e expressar gestualmente nosso desprezo, indignação ou
comiseração para com os torcedores adversários.
Ainda faltava uma coisa. Não
admitia vir a campo sem participar do grande momento artístico em que todos
ofendíamos veementemente a genitora do meretríssimo
senhor juiz de futebol. Mas a
senhora ao lado me acalmava: “Não, uma inversão de lateral é muito pouco para se
xingar a mãe do juiz”. De repente, porém, pênalti marcado contra nós. Se eu
não fosse torcedor, poderia até admitir que o nosso zagueiro não pode derrubar
com uma tesoura por trás o atacante adversário. Mas não, era o meu time e o mal
nascido juiz tivera a coragem de marcar um pênalti contra nós. Minha bem
graduada assessora, fora de si, esquecera de me avisar. Mas não precisava.
Todos juntos, em uma reação visceral, formamos um magnífico coro e, em
uníssono, ofendemos a distinta, vetusta, digna e anônima senhora que tivera a
coragem de não abortar essa disforme e asquerosa criatura que se veste sempre
de preto, emite esquisitos sons pela boca e somente rouba para o time
adversário..
Depois desse momento,
percebi, quase terminada a partida e quase perdido o jogo, que o idioma estava
totalmente liberado e explodia no estádio em toda a sua pujança e vitalidade. Todos
podiam ser ofendidos com qualquer nome e por qualquer motivo. Até o craque do
time, correndo apoplético por todos os cantos do gramado, recebia todo o tipo
de epíteto, sendo inclusive comparado àquele estranho e suspeito animal que
exibe galhos na cabeça. Não podia deixar de admirar a senhora ao lado que
demonstrava constantemente os seus conhecimentos e exercitava competentemente a
sua fluência idiomática.
De volta para casa,
torcedor derrotado, consolava-me extasiado com a grandeza e possibilidades de
nosso imenso e surpreendente idioma. Têm toda a razão aqueles que defendem que
devemos estudar mais acuradamente a nossa própria língua e eu estou fortemente
determinado a isso. Firmei o propósito, inclusive, de jamais voltar a um
estádio, sem antes participar de um curso intensivo da nossa língua pátria, especialmente
de algum que tenha em seu currículo o extraordinário e exuberante dialeto do
campo de futebol.
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