sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

SEM MEDO DO CAOS

Marcos Monteiro*

Talvez a maior descoberta da civilização aconteceu no século XX: a realidade do caos. Claro que o caos já era conhecido, mas como estrutura a ser superada ou região obscura a ser evitada. A vitória da ordem sobre a desordem, de Deus sobre o Caos, pertence à maioria das tradições cosmogônicas registradas em nossa história. Descobrir que o caos é estrutural,  parte da realidade que se estabelece em tensão com o cosmos, pode nos ajudar a compreender um pouco mais da vida e um pouco mais de nós mesmos. O universo é caos e cosmos, a vida é cosmos e caos, a existência é caos e cosmos. A morte é a vitória completa da ordem sobre a desordem, do cosmos contra o caos.

A frase de Nietzsche, o filósofo do dionisíaco, “somente quem possui o caos na alma pode produzir uma estrela brilhante” coloca a noção de ordem e de existência de cabeça para baixo, visível quando comparamos com a conhecida frase de Kant, “o céu estrelado acima de mim e a ordem moral dentro de mim”. O céu e a moral seriam lugar não das estrelas eternamente fixadas, mas da produção caótica de astros luminosos. A lembrança da transgressão moral, no rastro de Thoreau, Gândhi e Martin Luther King Jr, nos autoriza a desconfiar de um mundo ordenado, belo e inútil. Em historietas de cunho popular, um lugar assim, firmemente organizado, seria o inferno, convite ao eterno tédio.

Na nossa bandeira, a ordem antecede o progresso. Na prática, quando isso acontece, o que resulta é o caos social sem medidas, pois os defensores da ordem são quase sempre os defensores da morte. A própria palavra “ordem” carrega uma dose de autoritarismo capaz de esmagar qualquer tentativa de vida que não esteja dentro dos conformes. Em algum momento alguém dá uma “ordem”, legítima e legalizada, e a morte se estabelece como na comunidade de Pinheirinhos em São Paulo, recentemente, e nos constantes conflitos entre proprietários e sem-terra, sem-moradia, sem-lugar.

Muitas das grandes ousadias históricas, resultantes em movimentos de libertação, foram combatidas em nome da ordem contra a desordem, do cosmos contra o caos. Todos os medos que temos quando se fala em reformas necessárias se resumem ao medo do caos. Paradoxalmente, é o caos que predomina quando não admitimos o seu espaço e a sua necessidade. Permitido como lugar legítimo de ebulição, o caos pode trazer novas soluções para antigos problemas. Wilhelm Reich quando defendia a revolução sexual admitia que haveria a possibilidade de um período de caos até que a humanidade aprendesse a legitimidade das várias formas de amor. O medo do caos, portanto, não deve nos levar à paralisação.

O nosso próprio modo de ser deve encontrar a proporção necessária entre o caos e o cosmos, entre a ordem e a desordem. Nas regiões não ordenadas da nossa interioridade existem possibilidades de criatividade e beleza que ainda não experimentamos, talvez por não querermos correr o risco do caos. Pitadas de caos sobre o nosso tempo e nosso espaço e sementes de ordem espalhadas pelo nosso caos, pode ser começo de grandes e misteriosas coisas. Entre os novos direitos humanos a reivindicar pode estar o direito de cada a um pouco de caos.

As soluções da ordem sobre o momento em que vivemos, não estão resultando em nada, e arriscar-se a entender o caos e aprender com o mesmo pode ser a única maneira de estabelecermos uma civilização mais satisfatória. Nunca uma sociedade sem caos, mas um lugar em que o caos seja produtor de beleza e de brilho, em que caos e cosmos se encontrem em novas e encantadoras configurações.

Feira de Santana, 03 de fevereiro de 2012.

*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055.

Um comentário:

  1. Lendo o texto, me dei conta de que "ordem" é um anagrama de "morde"... me deu medo foi da ordem, agora! rs

    Grande abraço, pastor Marcos!

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