sábado, 26 de março de 2011

De crianças e de morcegos

Logo no início do sermão, o morcego começou a voar pela nave do templo, disputando a atenção do auditório com a acostumada eloqüência do pastor. Fingir que nada estava acontecendo e continuar o sermão seria a atitude mais adequada nessa inesperada situação (os manuais de homilética não preparam o pregador para tudo) e o pastor esmerou-se na precisão do falar e na adequação dos gestos.

Os vôos do morcego eram um não planejado espetáculo aerodinâmico que começou a roubar totalmente a atenção da congregação. Os rápidos movimentos aéreos em direção de obstáculos e o preciso desvio no último instante faziam com que todos ficassem suspensos nos movimentos do mamífero alado. Era visível que o bicho buscava uma fresta por onde pudesse escapar para espaços mais amplos e, talvez fosse, além da questão estética, o próprio emblema da liberdade que a cena sugeria que mantivesse a todos esquecidos do sermão.

A essa altura, a própria oratória estava a dar voltas no ar, sugestionada pelas asas do morcego, ao ponto do pastor buscar, longe daqueles vôos e longe dos movimentos sincronizados das cabeças e olhares dos membros da igreja, um ponto de apoio, qualquer alvo fixo onde pudesse pousar o olhar para prosseguir firmemente no seu objetivo. E encontrou. Uma criança de cerca dos seus nove anos de idade, talvez um pouco mais, com um saco de papel ao lado, não desgrudava os olhos do pastor, ouvidos atentos a cada uma de suas palavras, completamente desinteressado de vôos de morcegos e de signos de liberdade.

O que existe de especial em uma criança que a faz escolher, diante do espetáculo que domina a multidão, a palavra solitária de um pregador? Que surpresa ainda nos proporcionarão as crianças com a sua alegria espontânea e os seus saquinhos de papel? Seria especial esta criança ou não seriam verdadeiramente especiais todas as crianças, sempre capazes de gestos inesperados?

O pregador agora poderia prosseguir alegremente com o seu sermão de ouvinte único e armazenar a situação na memória para ilustrar futuros sermões e, por causa da criança, seguiria até o fim, apesar do morcego e apesar da desatenção do auditório. A criança e seu saquinho, em inesperada inversão, tornara-se discurso e mensagem para orador e mensageiro.

E então, tão repentinamente quanto surgira, o morcego desaparece pela fresta desesperadamente encontrada e o auditório aliviado volta a atenção para a entusiasmada mensagem do seu entusiasmado pastor.

Aí o menino abriu o saquinho e soltou outro.

3 comentários:

  1. Huahuahauhauhauhauhauhauhauah
    Inusitado!!! Adoreii!!!

    Quero ser criança pra soltar lampejos de liberdade na igreja, e quero ser morcego, pra ir em busca de lugares mais amplos na primeira oportunidade de fresta que eu encontrar!!!

    Vc, como sempre, inspirador, criativo e fantástico!!!
    Saudade Madoniraaaaaam!!!

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  2. Amei! Nada como a imaginação de uma criança para dar um pouco mais de "voo" a um sermão...

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  3. Kkkkkkkk. Muito massa. Agentes de Deus pra trazer um pouco de irreverência, caos e indecência onde, infelizmente, quase que paranóica e demasiadamente, se busca reverência, ordem e decência. Abraços.

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