Marcos Monteiro*
No domingo à tarde recebi a notícia da morte de José Comblin e chorei. Desde então, tento escrever um texto sem conseguir. Meu compromisso com o CEPESC me desafia a um comentário político semanal, com toda a liberdade de escolher o tema e eu sabia que esse seria o assunto, mas não é fácil. Pensar Comblin é refletir sobre alguém que não cabe nas crônicas da vida e não pode ser enquadrado em uma folha de papel. Teólogo, político, pensador, padre, cristão, são generalizações ultrapassadas pelo seu jeito único de ser. Talvez o modo do povo chamá-lo, “Padre Zé”, seja um bom caminho, pois caminho da saudade.
Lembro de um pequeno livro do teólogo Joseph Comblin, “Jesus de Nazaré”, que li ainda jovem, ansioso para aprender a ser cristão. A figura de um Jesus que se movia no espaço da liberdade, econômica, política, social, religiosa, causou um grande impacto na minha vida. Essa liberdade o levava a enfrentar as autoridades de seu tempo e a causar transtorno nas instituições do seu espaço. Se essa liberdade pode ser percebida nos escritos, pode ser medida com clareza nos gestos e nas opções de Padre Zé.
Um belga aprendendo a ser Zé nas periferias de João Pessoa, acessível a todos, amigo dos pequenos e dos pobres, sem esse paternalismo rançoso que transforma o outro em cliente. Conheci “marias” e “zés" marcadas e transformados pela vida desse padre mais do que padre. “Marias” e “Zés” desafiados a inserções políticas concretas na vida do povo, dentro do imaginário de uma espiritualidade cristã.
Refletir sobre espiritualidade era sua tarefa maior, no âmbito da teologia da libertação, e seus estudos e intuições são profundos. Curioso sobre as crises que o teriam levado a uma opção pelos pobres e a uma reflexão teológica associada ao tema da libertação, fiquei surpreso com a resposta. Não havia o que contar, nem crises nem rupturas; opção pelos pobres e pela teologia da libertação, não seria necessariamente uma opção, mas a continuidade de uma vida colocada dentro de uma vocação cristã.
Essa vida não estaria acessível dentro das instituições. Gradativamente, Padre Zé se torna cada vez mais povo e cada vez menos instituição. Abandona os espaços acadêmicos para oferecer cursos populares, com um olhar diferente para a Bíblia e para a teologia. A chamada “teologia da enxada” surge dessa imersão nesse ilimitado lugar pedagógico. Tem setenta anos de idade quando assume essa nova tarefa.
Em um retiro na cidade de Mogeiro, vi uma árvore plantada pelo Padre Zé, mais ou menos nessa época. Uma pessoa de setenta anos que planta árvores é alguém orientado pelo futuro. Sua recente decisão de dois anos atrás de morar na Barra, alto sertão da Bahia, pertence a essa lógica. Com a excitação de uma criança, pretendia “aprender alguma coisa com Dom Cappio”, o bispo que ama o Rio São Francisco e sua população, ao ponto de fazer greve de fome para defendê-lo da agressão capitalista.
Padre Zé morre aos oitenta e oito anos de idade, com a lucidez de uma testemunha participante da história do país e do mundo. Sem parar de escrever, sem parar de pensar, deixa conosco a saudade de seus livros, discursos, frases, pensamentos, atitudes e gestos; sementes plantadas no solo de nossa memória e no chão de nossa história. Sua ausência não produz um vazio. Pelo contrário, sua morte é caminho para que seu corpo também se torne semente de outros corpos e de outras vidas, grão de trigo que precisa morrer para não ficar só, nessa imagem do evangelho que encarna melhor do que ninguém.
A tarefa é nossa, agora, e nossa disciplina maior é cultivar sempre a saudade de Padre Zé.
Feira de Santana, 31 de março de 2011.
*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site http://www.cepesc.com/.
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