terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Uma cidade com uma torre

Gn 11, 4

“Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade, e uma torre, cujo topo chegue até os céus, e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra”.
O projeto era grandioso e bem intencionado, mas Javé é um Deus encrenqueiro e resolve fiscalizar a obra. Grande obra de grande povo.

O detalhe da torre não cabe bem no projeto. Parece linguagem de político: Torre que chegue e nome que chegue aos céus e que sejam perpetuados. Não soa bem aos ouvidos de Javé essa história de “nosso nome” e “nossa torre”.

Javé sabe bem que projeto de torre é projeto vertical e piramidal. No topo da torre só cabe um único nome, portanto, a linguagem é enganosa. Ardis da opressão.

Imediatamente, Javé descobre o problema: há uma questão de linguagem, pois toda monossemia é perigosa e enganadora.

Uma cidade só, uma torre só, um povo só, uma língua só, são os caminhos cavilosos de uma opressão só. A torre é símbolo de um projeto de poder autocrático.

Imediatamente Javé cria a polissemia e a poliglotia e recria o caos social, porque sabe que todo caos é gerador.

O projeto de Javé não é vertical, há vertigens nas alturas. Um mundo horizontal é um mundo de horizontes, pluralidade de projetos, pluralidade de linguagens, pluralidade de cidades, sem torres.

Diante do poder autocrático que ajunta o povo em uma linguagem só, o projeto de Javé, criar o conflito social e o conflito lingüístico que espalha o povo para construir mundos.

Em um mundo de torres não é possível a diversidade e a paz é fruto da opressão. Em um mundo sem torres, novos mundos são possíveis e a paz vem da celebração das diferenças, da beleza proposta pela alteridade.

Javé nos convida a desconfiar da unanimidade. Há muito mais coisa do que se pensa por detrás da linguagem óbvia. Diante de uma única interpretação, Javé multiplica as hermenêuticas e nos chama a suspeitar de projetos monolíticos e monológicos.

Vamos construir, no lugar de uma cidade só com uma torre, um mundo de cidades sem torres espalhadas pelo espaço e tempo da diversidade.

Uma cidade se constrói pela gestão burocrática que cria a máquina humana de estivadores urbanos. Não se constrói cidades espalhando-se preguiçosamente pelo mundão de Deus.

Mas, Javé propõe o se espalhar pelo tempo da poesia e da beleza no espaço surpreendente da peregrinação, para escapar de tempos e espaços controlados pela gestão do poder. Essa distribuição de horas e lugares monótonos e previsíveis.

Nesse outro tempo e outro espaço, lógica do amor em vez de lógica do poder, as cidades surgem naturalmente, convidadas pela paisagem a aparecer.

Cidades à margem refrescante de rios, cheias de brisa e de sol, sem necessidade de torres. Cidade onde os peregrinos descansam o corpo e trocam abraços.

Nas múltiplas cidades sem torres, espalhadas naturalmente pelo mundo, todas as línguas convivem e conversam, pois o corpo e o carinho são signos léxicos universais.

 

2 comentários:

  1. Cara, eu sempre fiquei encucado: O que Deus viu de tão ruim na construção de uma torre (que talvez, na engenharia da época, não chegasse lá a grandes alturas)? E de repente vejo esse texto e de repente tudo faz sentido. Muito massa de verdade! É deus jogando por terra as relações verticais (no mercado seria o termo piramidal) das relações e fazendo o homem disseminar pelo mundo a diversidade. Nossa! Parabéns cara! E obrigado pelo esclarecimento!
    p.s. - Samir vai muito bem viu! Dando uma de cigano na casa de vários amigos (inclusive a minha). E, assim como o pai, escritor de mão cheia. Verborrágico que só ele e academicamente uma fraude sem proporções! Já viu que me indentifiquei muito com ele né!? kkkkkkkkk

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  2. Concordo com vc., Javé nos fez diversos para nos tormarmos um na fraternidade, na poesia. Li num livro que estou lendo que a palavra diabo, vem do grego, o que separa. No afastamos de Javé qdo oprimimos, qdo tornamos as cidades espaços de divisão e agressão.

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