Todo pessoal da Vila sabe que cachaça é água milagrosa, faz do fraco forte, do pobre rico, do covarde corajoso, homem feio se achar bonito e conquistador, e doente, doente, de pé na cova, se levantar para beber os “dois dedos” de vida existente em cada garrafa. O que ninguém podia imaginar é que João Cirilo, naquela tarde fatídica dos idos em que Maravila e o Ipiranga se batiam (como ainda se batem hoje em eterna rivalidade futebolística), com seus jogadores quase mágicos, iria aprontar o golpe do gole para cima do oponente. Na cabacinha de água refrescante, preparada para refrigerar a correria do time, estava na verdade era o líquido das maravilhas, a cachaça, preparada para agir; e o desejo, claro, era que transformasse o famoso e “maraviloso” time em um timeco qualquer, capturado no alçapão do ardiloso e malévolo técnico. João Cirilo era assim mesmo, não tinha limites nem entendia de ética desportiva.
No primeiro tempo, a água foi água mesmo que era para Aroeira, o técnico do Maravila não desconfiar da tramóia. O Ipiranga tinha se agüentado o que podia e o jogo estava empatado, um a um. Mas, no segundo tempo, a troca foi feita e o líquido que corria em campo era a “água que passarinho não bebe”. No começo, o pessoal começou devagar a buscar nas garrafas o fluido que pensavam que era água e o jogo seguia normal. Essas “águas” eram vigiadas e distribuídas por um comparsa de João Cirilo, infiltrado nas hostes adversárias. À medida que o tempo foi passando, era um tal de beber água, era jogador demais com sede, como nunca tinha se visto até então.
E o jogo ficou diferente. Bem, o Maravila não começou a jogar mal, como João Cirilo planejara, o problema era o show organizado em campo, em meio a um espetáculo de futebol que ficou na história para sempre. Jogadores se abraçavam e rebolavam, brincando e jogando bola. Jogadores exibiam suas qualidades sem nenhuma censura, exagerando nos dribles e nas atuações. O público espantado não sabia se ria das brincadeiras futebolísticas e não futebolísticas desenroladas diante de todos ou se reclamava da falta de objetividade do time, que só não se interessava em fazer gol.
Autorizado pela bebedeira, Roído saía driblando tudo que aparecia e inventando todo tipo de drible. Inventou o drible “bailarina” em que saía levando a bola na ponta dos pés, como se jogasse balé; inventou o drible “Maria Fumaça”, em que saía apitando e fazendo fila de jogador que aparecesse pela frente como se fosse um trem; e outros dribles mais. Um torcedor invadiu o gramado desesperado e Roído saiu correndo atrás dele, driblando o coitado, dando “banho de cuia” e jogando a bola entre as pernas do atônito aficionado. Driblou o juiz umas quatro vezes e chamou o bandeirinha para dançar dentro do campo. Como o bandeira era disciplinado e não entrava, ele saiu de campo e deu uns doze dribles, um atrás do outro, sobre esse visado auxiliar de juiz. De passagem ainda botou a bola por debaixo das pernas do gandula e deu um banho de cuia num dirigente, próximo demais do gramado.
Magela exibia sua categoria de zagueiro clássico, matando a bola no peito dentro da área e saindo fazendo embaixada, afrontando os atacantes, sem se preocupar com o perigo de gol. Biuzão, mostrava sua força física, protegendo a bola com o corpo, sem tocar na mesma, durante tempo suficiente para irritar adversários e torcedores. Depois, sorrindo, chutava a bola para cima, alto, alto, alto, e matava a mesma no peito, quando descia, daquele seu jeito um pouco descalibrado de jogador musculoso. O Rapaz pegava a bola e corria de um lado para o outro, explorando sua excepcional velocidade, sem nenhuma outra preocupação fora correr.
Houve outros lances, alguns até de natureza coletiva. Cinco jogadores do Maravila, em festiva algazarra, organizaram um “doidinho” no meio campo, passando a bola um para o outro e colocando os jogadores do Ipiranga na roda. Roído e Caçula organizaram uma tabela inusitada: ida e vinda, mão e contra-mão. Da sua área até a área do adversário, pé para pé, mas sem o chute final. E da área do adversário até sua própria área, pé para pé, e bola atrasada para Terêncio, o goleiro contorcionista. Esse, se quando sóbrio dava espetáculo, depois de beber ninguém segurava. Era um tal de botar mão por debaixo de perna, de entortar pescoço, de botar cabeça por debaixo da coxa e outras coisas mais, e isso em meio a defesas, sempre espetaculares. Terêncio não aceitava defender simplesmente: cada defesa era uma oportunidade para ostentar suas habilidades.
Nenhum espetáculo foi maior do que o de Biu do Efeito. Mostrou efeitos na bola que ninguém acreditava. Perto da área do adversário, chutou a bola com efeito para bater em trave esquerda, travessão, trave direita e voltar para a elegante matada de peito, que ninguém matava a bola de modo tão elegante quanto ele. Para ninguém duvidar de sua habilidade, repetiu essa mesma jogada quatro vezes.
E assim foi o jogo do dia da “água milagrosa”, esses momentos em que a criatividade maléfica de João Cirilo proporcionou essa partida impossível de ser esquecida por quem viu e Seu Madeira viu. João Cirilo não atingiu nenhum de seus objetivos, porque além de tudo perdeu a partida. Perdeu porque Rubenírio existe e estava escalado para jogar. Rubenírio era aquele jogador (o único, garante Seu Madeira) que o técnico Aroeira sempre dava dois goles de cachaça para ele poder jogar de modo eficiente e produtivo.
Rubenírio foi bebendo da “água” e se soltando em campo. Foi bebendo e driblando mais corajosamente, bebendo mais e fazendo lançamentos primorosos para companheiros, bebendo e chutando a gol. Nos quinze minutos finais, Rubenírio estava impossível. Ele sozinho podia enfrentar todo o time do Ipiranga, Milicunha e sua quadrilha de jogadores, e enfrentou. Começou umas escapadas para fazer gols e fez. Fez como nunca. Seis gols em uma partida, seis gols em quinze minutos. O Maravila aplicou uma das maiores goleadas de sua história nesse famoso clásico, sete a um. Graças a Rubenírio, graças à água milagrosa, graças à desgraça de João Cirilo.
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