Marcos Monteiro*
Festa de ano novo é claramente ritual de passagem em que o sol nos oferece mais um ciclo de dias para construirmos mundos. Sabemos, em meio a planos perfeitos, que estamos fadados novamente à imperfeição, que isso é destino do humano. Ao longo da história, aliás, aprendemos a desconfiar de mundos perfeitos. O encontro do nosso círculo mais próximo de família e amigos foi em uma fazenda e a fazenda é lugar e motivo de dois romances críticos de mundos perfeitos: o clássico de George Orwell, “A revolução dos bichos” e o de Chico Buarque, “Fazenda modelo”, escrito nos idos de setenta e quatro.
Reunir um grupo de cerca de trinta pessoas em uma fazenda é construir, certamente, um holograma, uma parte que ultrapassa a si mesma, onde o todo é representado. A tônica da esperança era o sentimento apropriado para uma experiência, adiada algumas vezes, mas enfim realizada: vivência de espiritualidade em que o sagrado e o profano encontrassem espaço e regessem juntos o coro da complexidade. Transformar dissonâncias e divergências em música é desafio da maestria da vida, necessidade urgente da sociedade em um planeta em progressiva degradação, com possibilidade real de auto-destruição.
Bem, a Igreja Evangélica Antioquia conseguiu reunir crianças e anciãos, adolescentes, jovens, adultos, espíritas, protestantes, iniciados do candomblé, católicos, artistas, profissionais de diversas áreas, pesquisadoras, pensadores, faladores, contempladoras, músicos, pintores, artesãs, amostra suficiente para representar a diversidade social humana. E podemos dizer que construímos concretamente o tempo e o lugar da esperança de um novo mundo. Mundo não perfeito, para alívio de todos e todas, mas mundo em que as diferenças e os conflitos causados pelo embate de idéias, nos desafiam a permanentes aprendizados de paz. Não foi à toa que a última canção litúrgica nos conclamava a cantar: “haja paz na terra a começar em mim”.
“Não pode haver paz na terra sem que haja paz entre as religiões”, tem bradado constantemente o teólogo cristão Hans Küng. As desavenças religiosas têm ou produzido ou consolidado um rastro de sangue nas relações humanas, tanto entre países quanto entre pessoas em seu âmbito individual. Levantar o grito pela paz e exercer esforços nessa direção tem sido a tarefa de poucos religiosos e de bem poucos cristãos. Djalma Torres, pastor durante trinta anos da Igreja Batista de Nazareth, presidente do CEPESC e idealizador da Igreja Evangélica de Antioquia tem sido um desses poucos. A compreensão da alteridade, o convívio entre divergentes, a celebração do mosaico da diversidade ameaçam tradições e instituições poderosas e causam perplexidade nas consciências e experiências de fé.
A passagem do ano novo na fazenda foi uma dessas preciosas tentativas. Houve convergências e divergências de idéias e de significação. O ser humano é um animal que produz significado, quase sempre tão próprio quanto o seu próprio modo de ser. Os significados, então, passam a ser o espaço da singularidade, da criatividade e da divergência. Mas a vida está além da capacidade humana de atribuir significados. O mundo, o ser humano e a idéia de Deus, transcendem nossa capacidade de significar. Mesmo assim, temos o direito de tentar decifrar significativamente o mistério da existência.
Mas existem momentos que dispensam a significação. O riso, a alegria, a conversa fiada, o beijo, o abraço, os sentimentos despertados por uma noite cheia de estrelas, precisam do silêncio. Essa região do não significável torna a vida mais vívida. São instantes em que suspender a atitude crítica e a necessidade imperiosa de atribuir sentido a tudo, é a condição oferecida pela vida. Esse é o momento de abandonar-se ao mistério em toda a sua pujança, mistério estabelecido dentro de nós e ao nosso redor e, talvez, descobrir que aquilo que consideramos insignificante seja a própria tônica da vida, preâmbulo de qualquer significação.
Por tudo isso, a fazenda, essa mistura de rural e urbano, de gado e gente, de cavalo e automóvel, de trompete, violão e antena parabólica, é o lugar apropriado para começarmos a costurar juntos mais um ano. Ano imperfeito, como somos, mas ano em que o aprendizado continua, passando cada vez mais pela vida do outro que, segundo Lévinas, nos antecede na região do ser. O tecido social que somos desafiados a coser é a bela colcha de retalhos da diferença e da alteridade. Colcha feita de sobras, estratégia que desafia a lógica da estética, transformando imperfeição em beleza. Isso nos basta para construir um mundo melhor.
Feira de Santana, 07 de janeiro de 2011.
*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também é coordenador do Portal da Vida e faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055. Veja esse texto também no blog www.madoniram.blogspot.com
Grande Marcos... Cara, certamente uma das coisas que quero fazer ainda é ir visitar tua comunidade ai em Feira de Santana... Muito bom teu texto cara, e é muito massa ver que se conseguiu a experiencia maravilhosa de se juntar a diversidade! To começando a escrever uma comunicação pra apresentar no proximo encontro da ftl em são luis... Esta em fase de ebulição... Quando tiver mais consistente gostaria de te mandar pra vc dar uma olhada... Fazer correções, dar umas dicas, essas coisas.
ResponderExcluirEntão é isso meu velho, é agora que a vida acontece!
Grande abraço!
Olá, minha amiga te indicou o seu blog. Bom, confesso que fico assustada com essa tal "diversidade", pois considero-a anti biblica, e um terreno para a reino do anti cristo. Me responda, diante da diversidade, quem lidera esse grupo unido? E para essa harmonia, é preciso que um concorde com a crença do outro, que é bem diferente de respeitar o outro. Pr. essa sua mistura me assusta.
ResponderExcluirFania, identidade e diversidade, celebração da diferença e compromisso, não são necessariamente excludentes. Posso continuar sendo homem e admirar e celebrar as mulheres. Posso continuar sendo cristão e admirar a religião do outro, sem necessariamente desejar ser participante. Esse diálogo nosso merece mais tempo e mais cuidado. Meu e-mail é madoniram@yahoo.com.br. Um abraço e obrigado por se posicionar.
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