sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

QUANDO AS CRIANÇAS RESISTEM

Marcos Monteiro*

Uma criança, que emergiu dos escombros produzidos pela catástrofe causada pelas enchentes na região serrana do Rio de Janeiro, nos oferece a imagem para reflexão. A vida parece esse seguir em ordem previsível, mas sempre ameaçada pelas sombras das catástrofes. Os ratos, do romance “A peste” de Albert Camus, podem voltar a qualquer momento, trazendo a doença ameaçadora e reveladora. Porque as catástrofes destroem mas também revelam a nossa humanidade em sua surpreendente extensão.

O sorriso que apareceu do entulho era puro e límpido, legítimo sorriso de seis meses de idade, de alguém que vive o momento, sem passado e sem futuro. É preciso que as crianças resistam às calamidades, por isso, mais do que ninguém, estabelecem em torno de si uma rede de solidariedade na qual balança a nossa esperança. Os flagelos nos convidam a resistir e isso é impossível de modo solitário. O número de pessoas que deixam tudo para se dedicar às vítimas de desastres constituem um exército de otimismo, extremamente necessário no momento que vivemos.

No Brasil, vivemos a crise do crescimento, berço de outras crises. Todos os fatores indicam que cresceremos solidamente daqui por diante, mas desenvolvimento implica também em desenvolvimento das contradições. Muitas pessoas se beneficiarão do processo de crescimento, mas muitas sofrerão. Por definição não podemos prever as catástrofes, mas podemos antever que as catástrofes sempre virão e farão as suas vítimas. Uma criança que escapa é mensagem de força e resistência, sinal de que a crueldade do mal não destruirá facilmente o nosso futuro.

Infelizmente, crianças, pobres, excluídos, participantes de minorias são constantes candidatos a vítimas, tanto nas catástrofes quando no curso normal da vida. Geralmente são quem pagam o preço do desenvolvimento. Ivan, um dos irmãos Karamasov, do romance de Dostoievski, repete que todos os pecados do mundo não valem a lágrima de uma criança. Essa observação, levada a sério, poderia pôr toda a nossa sociedade de cabeça para baixo e os nossos orçamentos se organizariam também como rede de proteção às crianças.

As catástrofes produzem escombros de toda a natureza. Também os nossos sonhos são mutilados e a pergunta sobre se a vida vale a pena volta com a força de uma enchente. No auto de João Cabral, “Morte e Vida Severina”, é o nascimento do filho de Seu José Mestre Carpina que responde à pergunta de Severino Retirante. “Não seria melhor se jogar da ponte e da vida?”. O nascimento da criança é a resposta da vida, resposta viva que garante que a vida vale a pena, mesmo quando mirrada, pequena, mesmo quando vida assim “severina”.

Uma criança que resiste às catástrofes transforma destroços em sementes de esperança. O sorriso de uma criança, invertendo a lógica de Ivan Karamasov, vale todos os desastres do mundo. Em meio à ruína de um mundo, nesse sorriso infantil, emerge possibilidades de muitos mundos, mais amorosos e mais justos, mais imunes às calamidades da vida.

Maceió, 14 de janeiro de 2011.

*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil.
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site www.cepesc.com.
Fone: (71) 3266-0055. Veja esse texto também no blog www.madoniram.blogspot.com

2 comentários:

  1. So alguem com a sensibilidade de Marcos Monteiro poderia mesmo a uma distância considerável dessa tragédia (Marcos escreve de Feira de Santana) escrever de maneira tão profunda e realista. Aqui caro amigo poeta vejo os sem teto mais preocupados em levar nas costas as tvs de plasma, que os valores do cuidado sejam repensados, para que os mais simples não sofram novamente

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  2. Como sempre escreves com a alma e se teus textos são tão brilhantes é porque tua alma brilha. De todos os textos que li sobre a tragédia, o seu é o que mais humaniza, é o que, tem ternura. Não conheço Ivan Karamasov, mas concordo que o sorriso de uma criança no meio de uma catástrofe é um raio de esperança.

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