quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Entre Caim e Abel

Gn 4, 8-10.

“Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.
Disse Javé a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei: acaso sou eu guardador de meu irmão?
E disse Javé: Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim.”

Na narrativa bíblica, a primeira guerra da humanidade destruiu um quarto da população mundial e foi guerra religiosa: Caim matou Abel porque o seu ritual não conseguiu agradar a Deus.

Claro que o texto, em sua estranheza, nos remete às brumas de um passado em que pode servir a múltiplas objetivações. Ecos, talvez, dos conflitos entre pastores e agricultores, ou entre coletores e caçadores, ou degradação dos cananeus, atrelando-os a Caim, ou outra coisa. De todo o modo, na narrativa completa (Gn 4,1 – 4,16), há situações e lições deliciosas.

Primeiro, o estranho procedimento de Javé. Caim é o primogênito dado de presente a Eva, (o seu nome é exclamação de gratidão) e leva ofertas pacíficas, do campo, daquilo que tinha. Abel é figura insignificante (só se torna importante quando morto). Abel sacrifica um cordeiro e agrada a Javé, desse modo.

A irritação de Caim parece legítima: Deus se agradou de ofertas sangrentas, obtidas por meio violentos, e não se agradou da sua oferta, aparentemente mais lógica. Primogênito e preferido, se sente agora preterido. Não podendo dirigir sua ira contra Deus, mata Abel, em ira sagrada. Comete a violência maior: sacrifica o seu irmão no altar de sua santa fúria.

No meio de nossas santas frustrações, o desafio do outro. O outro nos ameaça nesse lugar que podemos chamar de região do ser. O outro, pode se tornar o preferido de Deus, usurpando o nosso lugar de direito. Caim levanta a pergunta chave: “Sou guardador?”.

A nossa humanidade pode ser entendida entre Caim e Abel e suas matizes gradativas. Caim é o escolhido de Deus que mata o outro no seu imponente direito. Abel é o insignificante pastor de ovelhas a quem Deus atribui maior significado. Tratamos o insignificante Abel com atitudes que vão do desprezo à violência.

Deus cobra do agricultor Caim a atitude de um pastor, como Abel. Caim deveria ter sido o pastor de Abel. Sendo primogêntio de Deus se tornara automaticamente o guardador e cuidador de seu insignificante irmão. Como cuidadores, a alegria do outro nos leva à exultação.

O próprio Javé se propõe agora a ser o cuidador de Caim. Aquele que violentamente matou não pode, estranhezas de Javé, ser morto violentamente. Javé coloca um sinal na testa de Caim, sinal de graça e de cuidado. Como agricultor, Caim demonstrara desconhecer os desejos da terra e seria agora um estranho a errar pela mesma. Mesmo assim, estaria debaixo do sinal gracioso de Deus. Não poderia sofrer morte violenta, não poderia ser objeto de vingança.

A terra não suporta violência. Os rios que correm pelas entranhas da terra são rios de água, rios de vida. Ninguém tem o direito de transformar a terra em leito de rios de sangue, rios de morte, nem mesmo como vingança. Vingança e justiça não são sinônimas no dicionário de Javé.

Vivemos a nossa interioridade entre a fúria imponente do agricultor Caim e o cuidado pastoral, cotidiano e insignificante de Abel. Embeber as nossas mãos no sangue do cordeiro, pode ser promessa a Javé de nunca manchar as mãos com o sangue do outro. O trabalho paciente, monótono e insignificante de pastorear ovelhas, pode ser o símbolo da nossa responsabilidade de pastorear o outro.

9 comentários:

  1. Que privilégio poder ler o seu texto. Essa mensagem deve ser propagada por todo o mundo.
    Parabénsssssss

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  2. Olá, Pastor!
    Essa tua reflexão, me deixa muito inquieta. Então Abel foi assassinado e não se fez justiça divina a ele por esse ato? E Javé foi complacente com Caim, cuidando para deixá-lo protegido, qdo lhe põe um selo na teta? Você diz que "A nossa humanidade pode ser entendida entre Caim e Abel e suas matizes gradativas." Como assim? "Caim é o escolhido de Deus que mata o outro no seu imponente direito (Direito, que direito? de matar o irmão por vingança?). "Abel é o insignificante pastor de ovelhas a quem Deus atribui maior significado (ai eu digo: mas Javé não lhe fez justiça). Tratamos o insignificante Abel com atitudes que vão do desprezo à violência." Segundo essa sua reflexão, Deus cobra do agricultor Caim a atitude de um pastor, como Abel. Caim deveria ter sido o pastor de Abel e ao invés disso o matou. então o pastor pode matar a ovelha errante? Caim, como vc coloca:Sendo primogêntio de Deus se tornara automaticamente o guardador e cuidador de seu insignificante irmão. Como cuidadores, a alegria do outro nos leva à exultação."
    Essa exultação concede o direito de se execução do outro?
    Asssim, você diaz: "No meio de nossas santas frustrações, o desafio do outro. O outro nos ameaça nesse lugar que podemos chamar de região do ser. O outro, pode se tornar o preferido de Deus, usurpando o nosso lugar de direito. Caim levanta a pergunta chave: “Sou guardador?”.
    Assim, nossas frustrações diante do procedimento do outro não chegam ao conhecimento de Javé como um pedido de socorro contra os malfeitores? Caim foi perverso e até respondão com Javé... Mas, ele ainda alcançou misericórdia por parte de Javé. Sei, que nessa tua reflexão estão imbuídos muitos significados referentes ao nosso viver cristão, mas,também material e social. Fiquei meio sem entender onde quisestes chegar. Vamos conversar mais sobre isso? Javé se propôs a ser o cuidador de Caim, por que? Para evitar que ele continuasse sua violência? Ou porque tinha propósitos pra ele continuar sendo guardador...?
    E ai pastor Marcos? Pode me explicar isso, teologicamente melhor?
    Abraços, vc continua sendo, cada vez mais, muito bom nas suas refelxões. Parábens por mais essa!
    M.FiS

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  3. Obrigado por essa preciosidade, eu precisava ler esse post. Ele me fez perceber por mais um angulo o significado do trabalho insignifiante que tenho tentado fazer (pastorear)... Mais uma vez obrigado, abraço!

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  4. Belíssimo texto, sempre um desafio, sempre um grande prazer a leitura, e sempre essa sensação que a Bíblia é muito mais do q meus olhos veem... rsss... Valeu Pr. Marcos!!!Cuidar de pessoas é sempre um desafio, cuidar daqueles q são diferentes de nós e nos prmitir ser cuidados por eles é um desafio ainda maior...rssss
    Grande Abraço!!

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  5. Mira, muito obrigado pelas pertinentes provocações. Claro que a imponência de Caim é vaidade e presunção sagrada. Muitos "escolhidos" agem assim, além do bem ou do mal, além do outro. Diante do outro, ou a violência ou o carinho, conforme Lévinas. Mas estranhamente Javé passa a cuidar de Caim. Caim, rejeitado por Deus, destrói o irmão e é rejeitado pela terra. Um agricultor de quem a terra desconfia. Mas a justiça de Javé tem como limite a sua misericórdia. Javé interrompe o circuito de violência propugnado pela vingança colocando o sinal de proteção sagrada na testa de Caim. Caim tornou-se agora insignificante e Javé parece sentir uma estranha atração pelos insignificantes. Quando Caim sai da imponência para a insignificância Javé resolve tornar-se seu pastor...

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  6. Pr Marcos, bom demais ler seus textos! Saudades especialmente dos "Bibliagindos"...
    Desafio grande esse de cuidar do outro... Sempre me esbarro na vida para entender o melhor modo de fazer isso, sem que o outro seja o inferno para mim, e sem que o outro me ache o inferno... rrssss
    Aguardo as próximas meditações!! Saudades de meu pastor!!

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  7. Marcos. Belíssima reflexão! Faça vários backups viu, destes textos, já estou fazendo o meu aqui tá, no disco eterno. Forte abraço!

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  8. Gosto qdo vc busca o inusitado no texto bíblico. Começa com uma interpretação quase literal e depois dá um salto e trás a essência de Javè, o cuidado com o outro, a não violência. E aqui estamos nós entre a fúria e o cuidado... Que Javé nos inspire, sempre nas escolhas.

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  9. Pr. Marcos,

    Não sei qual a pérola de maior valor: o texto ou o seu comentário. Em todo o caso, há nos dois uma abundância da graça.

    Danilo Gomes

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