Gn 4, 8-10.
“Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.
Disse Javé a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei: acaso sou eu guardador de meu irmão?
E disse Javé: Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim.”
Na narrativa bíblica, a primeira guerra da humanidade destruiu um quarto da população mundial e foi guerra religiosa: Caim matou Abel porque o seu ritual não conseguiu agradar a Deus.
Claro que o texto, em sua estranheza, nos remete às brumas de um passado em que pode servir a múltiplas objetivações. Ecos, talvez, dos conflitos entre pastores e agricultores, ou entre coletores e caçadores, ou degradação dos cananeus, atrelando-os a Caim, ou outra coisa. De todo o modo, na narrativa completa (Gn 4,1 – 4,16), há situações e lições deliciosas.
Primeiro, o estranho procedimento de Javé. Caim é o primogênito dado de presente a Eva, (o seu nome é exclamação de gratidão) e leva ofertas pacíficas, do campo, daquilo que tinha. Abel é figura insignificante (só se torna importante quando morto). Abel sacrifica um cordeiro e agrada a Javé, desse modo.
A irritação de Caim parece legítima: Deus se agradou de ofertas sangrentas, obtidas por meio violentos, e não se agradou da sua oferta, aparentemente mais lógica. Primogênito e preferido, se sente agora preterido. Não podendo dirigir sua ira contra Deus, mata Abel, em ira sagrada. Comete a violência maior: sacrifica o seu irmão no altar de sua santa fúria.
No meio de nossas santas frustrações, o desafio do outro. O outro nos ameaça nesse lugar que podemos chamar de região do ser. O outro, pode se tornar o preferido de Deus, usurpando o nosso lugar de direito. Caim levanta a pergunta chave: “Sou guardador?”.
A nossa humanidade pode ser entendida entre Caim e Abel e suas matizes gradativas. Caim é o escolhido de Deus que mata o outro no seu imponente direito. Abel é o insignificante pastor de ovelhas a quem Deus atribui maior significado. Tratamos o insignificante Abel com atitudes que vão do desprezo à violência.
Deus cobra do agricultor Caim a atitude de um pastor, como Abel. Caim deveria ter sido o pastor de Abel. Sendo primogêntio de Deus se tornara automaticamente o guardador e cuidador de seu insignificante irmão. Como cuidadores, a alegria do outro nos leva à exultação.
O próprio Javé se propõe agora a ser o cuidador de Caim. Aquele que violentamente matou não pode, estranhezas de Javé, ser morto violentamente. Javé coloca um sinal na testa de Caim, sinal de graça e de cuidado. Como agricultor, Caim demonstrara desconhecer os desejos da terra e seria agora um estranho a errar pela mesma. Mesmo assim, estaria debaixo do sinal gracioso de Deus. Não poderia sofrer morte violenta, não poderia ser objeto de vingança.
O próprio Javé se propõe agora a ser o cuidador de Caim. Aquele que violentamente matou não pode, estranhezas de Javé, ser morto violentamente. Javé coloca um sinal na testa de Caim, sinal de graça e de cuidado. Como agricultor, Caim demonstrara desconhecer os desejos da terra e seria agora um estranho a errar pela mesma. Mesmo assim, estaria debaixo do sinal gracioso de Deus. Não poderia sofrer morte violenta, não poderia ser objeto de vingança.
A terra não suporta violência. Os rios que correm pelas entranhas da terra são rios de água, rios de vida. Ninguém tem o direito de transformar a terra em leito de rios de sangue, rios de morte, nem mesmo como vingança. Vingança e justiça não são sinônimas no dicionário de Javé.
Vivemos a nossa interioridade entre a fúria imponente do agricultor Caim e o cuidado pastoral, cotidiano e insignificante de Abel. Embeber as nossas mãos no sangue do cordeiro, pode ser promessa a Javé de nunca manchar as mãos com o sangue do outro. O trabalho paciente, monótono e insignificante de pastorear ovelhas, pode ser o símbolo da nossa responsabilidade de pastorear o outro.
Que privilégio poder ler o seu texto. Essa mensagem deve ser propagada por todo o mundo.
ResponderExcluirParabénsssssss
Olá, Pastor!
ResponderExcluirEssa tua reflexão, me deixa muito inquieta. Então Abel foi assassinado e não se fez justiça divina a ele por esse ato? E Javé foi complacente com Caim, cuidando para deixá-lo protegido, qdo lhe põe um selo na teta? Você diz que "A nossa humanidade pode ser entendida entre Caim e Abel e suas matizes gradativas." Como assim? "Caim é o escolhido de Deus que mata o outro no seu imponente direito (Direito, que direito? de matar o irmão por vingança?). "Abel é o insignificante pastor de ovelhas a quem Deus atribui maior significado (ai eu digo: mas Javé não lhe fez justiça). Tratamos o insignificante Abel com atitudes que vão do desprezo à violência." Segundo essa sua reflexão, Deus cobra do agricultor Caim a atitude de um pastor, como Abel. Caim deveria ter sido o pastor de Abel e ao invés disso o matou. então o pastor pode matar a ovelha errante? Caim, como vc coloca:Sendo primogêntio de Deus se tornara automaticamente o guardador e cuidador de seu insignificante irmão. Como cuidadores, a alegria do outro nos leva à exultação."
Essa exultação concede o direito de se execução do outro?
Asssim, você diaz: "No meio de nossas santas frustrações, o desafio do outro. O outro nos ameaça nesse lugar que podemos chamar de região do ser. O outro, pode se tornar o preferido de Deus, usurpando o nosso lugar de direito. Caim levanta a pergunta chave: “Sou guardador?”.
Assim, nossas frustrações diante do procedimento do outro não chegam ao conhecimento de Javé como um pedido de socorro contra os malfeitores? Caim foi perverso e até respondão com Javé... Mas, ele ainda alcançou misericórdia por parte de Javé. Sei, que nessa tua reflexão estão imbuídos muitos significados referentes ao nosso viver cristão, mas,também material e social. Fiquei meio sem entender onde quisestes chegar. Vamos conversar mais sobre isso? Javé se propôs a ser o cuidador de Caim, por que? Para evitar que ele continuasse sua violência? Ou porque tinha propósitos pra ele continuar sendo guardador...?
E ai pastor Marcos? Pode me explicar isso, teologicamente melhor?
Abraços, vc continua sendo, cada vez mais, muito bom nas suas refelxões. Parábens por mais essa!
M.FiS
Obrigado por essa preciosidade, eu precisava ler esse post. Ele me fez perceber por mais um angulo o significado do trabalho insignifiante que tenho tentado fazer (pastorear)... Mais uma vez obrigado, abraço!
ResponderExcluirBelíssimo texto, sempre um desafio, sempre um grande prazer a leitura, e sempre essa sensação que a Bíblia é muito mais do q meus olhos veem... rsss... Valeu Pr. Marcos!!!Cuidar de pessoas é sempre um desafio, cuidar daqueles q são diferentes de nós e nos prmitir ser cuidados por eles é um desafio ainda maior...rssss
ResponderExcluirGrande Abraço!!
Mira, muito obrigado pelas pertinentes provocações. Claro que a imponência de Caim é vaidade e presunção sagrada. Muitos "escolhidos" agem assim, além do bem ou do mal, além do outro. Diante do outro, ou a violência ou o carinho, conforme Lévinas. Mas estranhamente Javé passa a cuidar de Caim. Caim, rejeitado por Deus, destrói o irmão e é rejeitado pela terra. Um agricultor de quem a terra desconfia. Mas a justiça de Javé tem como limite a sua misericórdia. Javé interrompe o circuito de violência propugnado pela vingança colocando o sinal de proteção sagrada na testa de Caim. Caim tornou-se agora insignificante e Javé parece sentir uma estranha atração pelos insignificantes. Quando Caim sai da imponência para a insignificância Javé resolve tornar-se seu pastor...
ResponderExcluirPr Marcos, bom demais ler seus textos! Saudades especialmente dos "Bibliagindos"...
ResponderExcluirDesafio grande esse de cuidar do outro... Sempre me esbarro na vida para entender o melhor modo de fazer isso, sem que o outro seja o inferno para mim, e sem que o outro me ache o inferno... rrssss
Aguardo as próximas meditações!! Saudades de meu pastor!!
Marcos. Belíssima reflexão! Faça vários backups viu, destes textos, já estou fazendo o meu aqui tá, no disco eterno. Forte abraço!
ResponderExcluirGosto qdo vc busca o inusitado no texto bíblico. Começa com uma interpretação quase literal e depois dá um salto e trás a essência de Javè, o cuidado com o outro, a não violência. E aqui estamos nós entre a fúria e o cuidado... Que Javé nos inspire, sempre nas escolhas.
ResponderExcluirPr. Marcos,
ResponderExcluirNão sei qual a pérola de maior valor: o texto ou o seu comentário. Em todo o caso, há nos dois uma abundância da graça.
Danilo Gomes