sábado, 24 de julho de 2010

De coisas rodantes e seres pensantes

A coisa rodante conduzia orgulhosamente sua nova racional de estimação. Uma fêmea jovem e elegante, escolhida cuidadosamente a dedo, cansada que estava do macho meio desleixado que lhe tirara toda e qualquer paciência. Todo mundo sabe que as coisas devem ser bem tratadas e os seres pensantes, de modo geral, tratam muito bem as coisas, reservando sua agressividade e deseducação para os outros seres pensantes.

Sentia-se feliz com a nova mascote quase quanto se sentia feliz consigo mesma. Esse novo ente simbolizante brilhava os olhos enquanto lhe acariciava e usava toda a sua imaginação para lhe entontecer de inesperados e criativos elogios, ao ponto de sentir-se obrigada a retribuir com uma rodagem macia e com respostas rápidas às rápidas manobras da jovem raciocinante.

De passagem, quando convidava outro ser lingüístico para passearem juntos, a conversa girava sempre em torno de sua eficiência, capacidade e beleza, achando muita graça quando interrompia tais falas para derramar enxurradas de palavrões sobre outro ente falante que ameaçara loucamente arranhar a sua lataria. Seu sentimento de proteção dava um suspiro de alívio, em um trânsito cheio de humanos descuidados que, com sua inconseqüência, colocavam em perigo a tranqüilidade das coisas.

Os humanos são mesmo estranhos, enquanto tratam muito bem as coisas, às vezes às temem, como se não pudessem crer na sua eterna gentileza e no carinho com que as mesmas lhes acompanham cotidianamente. De vez em quando tomava conhecimento dessas ingênuas reuniões em que seres razoáveis falavam da possibilidade das coisas dominarem o mundo. Claro que podiam, mas do modo como eram bem tratadas, muito melhor deixar as coisas seguirem como estavam.

Chamava tais reuniões de ingênuas porque realizadas na presença das coisas, com o apoio das coisas, um pequeno punhado de humanos cercados de coisas por todos os lados. Se as coisas não fossem dóceis e amorosas poderiam fulmina-los a qualquer momento da pauta.

Algumas vezes, de birra mesmo, não respondia tão prontamente aos comandos da jovem lógica. Essa imediatamente lhe levava ao salão e era cercada de banhos, óleos, polimentos, cuidados, por muitas mãos hábeis e agradáveis. O que mais lhe agradava mesmo, no entanto, era o olhar consternado e preocupado da jovem cogitativa, sentindo-se assim mais amada do que nunca.

Por tudo isso, podia continuar rodando a vida, feliz, muito feliz, apenas com uma pequena preocupação. Se os entes ponderantes continuarem odiando entes ajuizantes enquanto amam apaixonadamente as coisas, tudo seguirá bem, e a ordem das coisas estará assegurada. Se, porém, o mundo virar e os humanos amarem humanos como amam coisas e passarem a tratar as coisas como tratam os humanos, terá chegado o momento da atitude radical.

Nessa nova conjuntura, as coisas seriam obrigadas a tomar o poder.

4 comentários:

  1. Com a devida licença, venho parabenizá-lo pelo blog e mais, pela sua forma de escrita.
    Nossa, não irei seguir este blog, irei perseguir.
    ótimo ambiente, de leitura inteligente e um pensamento crítico contagiante.
    Parabéns, mil vezes parabéns.
    Já ouvi falar de sua pessoa, e agora lendo o texto, fico maravilhada.
    Abraço.

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  2. Olha que as coisas já se revoltam, já funcionam quando querem, já têm vida própria!!! Cuidado com esses textos!! Vigie bem seu celular e computador, esses são os cabeças da revolução!!! rsss
    Saudadesssssssssss!!!

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  3. Minha mãe iria amar esse texto... Ela só vive dizendo q não cuido das minhas coisas... Pelo fim do texto sei q estamos muito longe da revolução das coisas... E aquela foto ali do post?? trata-se de quem?? Aletuza Abia ou Anisia??

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  4. Me tira fora dessa! Nem carro eu tenho...

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