Marcos Monteiro
Os tempos estão difíceis e para aprender a ser cristão é
preciso conversar com cágados. Deixe eu tentar explicar melhor. Vivemos esses
momentos em que para melhor ser cristão é preciso detestar os cristãos e
recusar terminantemente conversar com cristãos, converse com cágados. Isso
estou aprendendo humildemente com o meu amigo Walter, Bambam. Ele tem um cágado
com quem vive conversando e, se sua esposa chama isso de solidão, estou
propenso a chamar de filosofia e com o desafio de transformar em teologia,
talvez a “teologia do jabuti”.
Em uma palestra do teólogo José Comblin, ouvi surpreso ele
sugerir que houve um tempo em que a Igreja estava tão mal que o Espírito Santo
inspirou um grupo de ateus para combatê-la, tentando melhorar. Também, o
filósofo Kierkegaard, o “poeta que desejava ser cristão”, na expressão do
pastor e professor Merval Rosa, acreditava que a única maneira de ser cristão
era se afastar das igrejas. Do mesmo modo, o jovem teólogo e pastor, combatente
do nazismo, Dietrich Bonhoeffer, defendia que para ser realmente cristão era
preciso viver como se Deus não existisse, crítica à inércia cristã diante do
discurso hitlerista, convite à maioridade de um cristianismo que insiste numa
crédula infantilidade.
Pois bem, esses e outros, poderiam nos ajudar a formular a
teologia do jabuti, a conversar com cágados. Lembro do romance Quarup, de Antonio
Callado, em que um personagem nos propõe a organizar a nossa história, através
das fábulas populares do jabuti, em sua luta para escapar das armadilhas da
onça, da raposa, ou de outros, defendendo sua fruta típica, o taperebá. Uma
igreja brasileira “colonizada, sempre se colonizando”, continua abençoando o
colonizador e sagrando suas fórmulas políticas e econômicas. Como bons jabutis
precisamos aprender a utilizar nossa couraça e inventar truques para confundir
a destreza e voracidade de predadores.
Walter, Bambam, cansou de tentar conversar com cristãos e
argumentar contra essa sua tendência misógina, homofóbica, racista, legalista,
capitalista, narcisista, arrogante e triunfalista; papagaios domesticados pelos
colonizadores, capazes de repetir os seus discursos, sem nenhuma capacidade
crítica e sem nenhuma vontade de sair do conforto dogmático. Quando
adolescente, Walter praticava saltos ornamentais e, por causa disso, recebeu o
apelido de Bambam, a criança dos Flintestones de força descomunal. Com muito
gosto pela leitura e muito senso de humor, lembro de um episódio em que foi
cobrar um pênalti, com uma técnica nada sutil. Fez carreira e soltou a bomba,
mirando na cabeça do goleiro que se abaixou. Era bom goleiro, mas não era
doido: gol.
Olavo Bilac seria capaz de oferecer para Walter um poema
mais ou menos assim: “Ora, direis, conversar com cágados, certo perdeste o
senso”, mas bom senso é o que não falta nas conversas de Bambam. Gosta de ler,
de escrever e de conversar, mas esse último às vezes é cansativo, confessa, e
com cristãos é impossível. Gosto de conversar com ele, mas sou cristão, embora
meio jabuti, disposto o tempo toda a caminhar até Aracaju, nesse passo
tartarugal, para colecionar citações, histórias e argumentos pitorescos do seu
inesgotável bom humor. Chegando lá, preciso da coragem de levantar a cabeça da
carapaça, para ouvir mais atento, com certo receio de levar uma bolada.
Uma teologia do jabuti teria de ser da prioridade da graça e
da misericórdia sobre leis e dogmas, e recitaria um versículo mais ou menos
assim: “Ainda que eu fale a língua dos anjos e dos cágados, se não tiver amor
será ruído inútil, barulho redundante”. Porque é disso que versa a vida e que
alimenta a nossa conversa de todo o dia, as aventuras, as peripécias e as
responsabilidades do amor. Por amor somos capazes de cruzar fronteiras,
inventar empreendimentos e pintar pássaros e peixes. E é em nome do amor e da
misericórdia que não estamos conseguindo dialogar com os cristãos, preferimos
os cágados.
Lindo e verdadeiro esse artigo meu amigo Marco Monteiro.
ResponderExcluirAvante a teologia do cágado!! Lindo e sensível texto, Marcos. Agradecida pelo "alimento" do caminho!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAinda bem que eles existem e nos escutam: os cágados! Valeu Marcos!
ResponderExcluirOlá Marcos. Muito bom o texto.voce realmente é uma fonte de boas aguas.Realmente os cristãos estão em uma mutação perversa, se afastando do essencial. Abraços.
ResponderExcluirQue maravilha de Texto Marcos. Filosófico, inquietante, estimulante, e libertador. Estou feliz em ter lido.
ResponderExcluirUltimamente tenho preferido meditar, já que eu não tenho um cágado, talvez seja essa a minha forma de praticar a teologia do jabuti, na tentativa de poder conversar com cristãos.
ResponderExcluirMarcos, seu olhar poético é encantador. Continue a poetizar. Sempre!
ResponderExcluirAbraços.
Em tempos de barulho infernal, esse texto nos leva a refletir e mudar nossa forma de ouvir e de conversar. Muito proveitoso para mim.
ResponderExcluirTexto Excelente!! Parabéns!
ResponderExcluirÉ bem mais fácil conversar com cagados,tem um casal aqui em casa, mas o grande desafio pra mim que procuro vencer é conversar com certos cristãos bolsominios...
ResponderExcluirMarcos,
ResponderExcluirSeu texto contribui para entender a atual realidade da Igreja no Brasil. À minha maneira leiga, já dialoguei com você a respeito disso. Prefiro conversar com cristãos como você e seus amigos, que utilizam tal termo (cristãos) não para julgar e agredir os outros, mas a partir da acepção verdadeira: amor, amor, amor!
Quando me falta a oportunidade da aprazível companhia de cristãos como vocês, também prefiro conversar com cágados.
Abraços e parabéns pelo texto!