Marcos Monteiro
Seu Jorge liga a televisão e
franze o cenho meio assim indignado com a presidenta Dilma. Não lhe interessam
as questões linguísticas, “presidenta” ou “presidente”, nem mesmo o discurso, o
qual nem ouve, mas está descontente com a vida e a culpa é do governo. Aliás, a
culpa sempre foi do governo, só mudavam os nomes próprios, e a culpa ainda será
do próximo governo, quando mudarmos de presidente. Mudar ou não mudar de
presidente agora é a questão pautada pelos políticos, alimentada pela mídia e
cozinhada na insatisfação popular, mas para ele o problema é outro. Seu Jorge é
aposentado pela Rede Ferroviária Nacional e a Rede Ferroviária não existe mais
e a aposentadoria dele é menor do que deveria, como a de milhões de
brasileiros, e o salário do seu filho é menor do que deveria, como o salário de
milhões de brasileiros e o salário de sua filha, bem, sua filha está
desempregada e a culpa é do governo.
Eu me considero uma espécie de
animal pré-histórico, um socialista (alguém já ouviu esse nome?) que também
acha que a culpa da desigualdade salarial e da desigualdade social é do governo
e de todos os governos. Mais ainda, tenho a mania de pensar totalidades e de
considerar que a furiosa busca pelo equilíbrio das contas dos países
hegemônicos desequilibram as contas de países emergentes ou de países
dependentes e que o sorriso feliz do deus grego Barack Obahma (enfim, um deus
negro) é diretamente proporcional à visível tensão dos dirigentes de países
metidos a titãs como a China, a Rússia, a Índia e o Brasil, que pareciam
ameaçar hegemonias e atrapalhar as refeições banhadas a ambrósia e néctar dos
habitantes desse Olimpo em que não pode haver lugar para todo o mundo.
Fico dividido entre acompanhar a
crise nacional e a crise de Seu Jorge, enquanto escrevo o meu texto. Seu Jorge
é um aposentado que não para de trabalhar, de varrer, de limpar a casa e de
estranhar esse genro esquisito que nunca trabalha, só vive no computador,
incapaz de perceber a diferença entre trabalho intelectual e trabalho braçal,
essa vida privilegiada que sei que vivo e que consiste em ler, escrever e
conversar. Chamar isso de trabalho, eu sei que é ofender a classe trabalhadora
desse país, por isso, de vez em quando tenho de parar para lavar pratos,
cozinhar ou literalmente carregar pedras de uma casa em reforma. A situação
está ruim para todo o mundo, mas talvez Seu Jorge é que tenha razão sobre o meu
trabalho e ache muito natural eu ganhar pouco. Mas em uma coisa concordamos: a
culpa é do governo.
O governo gasta mais do que ganha
e precisa diminuir despesas imediatamente. Faz isso porque os deuses do Olimpo,
os países hegemônicos, o capital financeiro, os parlamentares oposicionistas e
a mídia pressionam e se valem da insatisfação popular para aumentar a pressão.
Então o governo pega a tesoura e começa a cortar exatamente os gastos com o bem
estar da população, os gastos com saúde, educação e programas sociais. Não
adianta alguém dizer que o governo gasta muito mais exatamente financiando os
países hegemônicos, o capital financeiro, a classe política e a rede de
comunicações. Afinal, a ideia dos cortes foram deles e não se pode penalizar
quem aponta soluções. Então, não pode haver mais nenhuma dúvida e seu Jorge tem
razão: a culpa é do governo.
Quando me comparo a um animal
pré-histórico, claro que penso em um dinossauro, enorme e predador tiranossauro
rex, mas empalhado. Os socialistas já ameaçamos o planeta, mas fomos todos
domesticados e agora nos tornamos figuras exóticas exibidas em museus públicos,
até porque ninguém pagaria para nos visitar. Lembro disso porque a presidenta
Dilma já foi a companheira Dilma, ou a guerrilheira Dilma, socialista que
precisou ser torturada por acreditar em liberdades democráticas e em lutar por
mundos melhores. Agora recebe comando de domadores e se submete a piruetas
ensaiadas. Admirável apenas o fato de que hoje sofre torturas diferentes e as
enfrenta com a face impávida de sempre, mantendo a teimosia de andar na corda
bamba.
Mas aí volta a questão do
momento, mudar ou não mudar de presidente, ou “impeachment já”. Para Seu Jorge
tudo bem ou tanto faz, a culpa sempre será do governo. Para mim, em qualquer
modelo capitalista não há salvação nem para a democracia, nem para o governo
nem para o povo. E não adianta o argumento da corrupção porque a corrupção é o próprio
sistema e se pensarmos na totalidade, todas as coisas se encontram interligadas
de tal modo que a concentração de renda significa concentração de poder e a
concentração de poder usurpação do poder. Uma CPI da CPI, por exemplo, quebra
do sigilo bancário dos condutores de investigações éticas, revelariam
provavelmente coisas maiores do que as contas suíças de Eduardo Cunha. Não dá
para não lembrar da piadinha cínica do saudoso Millôr Fernandes. Um deputado
respondendo a outro: "Claro que participo dessa campanha nacional contra a
corrupção, mas preciso saber primeiro quanto levo”.
Pois bem, sou contra o
impeachment por diversas razões, inclusive por não gostar de participar de uma
chanchada tipo non-sense. Dilma está sendo acusada de fazer o que a própria
oposição queria que fizesse ou acusada de fazer o que todo o mundo faz. No caso
dela sem provas. Gostaria de tecer críticas relevantes ao governo Dilma, mas as
minhas críticas não interessam ao movimento oposicionista. Creio que no governo
Lula-Dilma o movimento popular e a sociedade civil tiveram a sua espinha dorsal
ameaçada de ruptura, o agronegócio suplantou a agricultura familiar a níveis
inimagináveis e o projeto desenvolvimentista privilegiou o latifúndio, o
capital internacional e a grande indústria. Redes de cooperação e resistência
sofreram um processo de desaceleração lastimável. Por outro lado, o Brasil hoje
é um canteiro de obras embargadas por interesses políticos. Quando os embargos
acabarem (e sempre acabam) a retomada do crescimento pode favorecer a classe
trabalhadora. Para mim, isso não é o suficiente mas é o melhor que o país já
teve nesses últimos cinquenta anos.
Admiro Dilma mas Seu Jorge é o
meu herói. Desses desconhecidos heróis brasileiros que vivem um cotidiano
chamado de despolitizado, mas que percebem no próprio corpo que a culpa é do
governo. Com salário muito menor do que o de qualquer político, Seu Jorge está
reformando a sua casa e está ficando muito bonita. Com a ajuda da filha
providenciou casa própria, ao longo de seus oitenta e quatro anos de vida, para
cinco filhos, comprando terreno, carregando pedras e pegando na colher de
pedreiro. Sou contra o impeachment de Dilma porque, mesmo sem o reconhecimento
dele, ela fez mais por seu Jorge do que muitos outros arrogantes presidentes
(mesmo eu achando que ainda é muito pouco). Com o impeachment de Dilma corre o
risco de haver o impeachment de Seu Jorge, ou o impeachment do povo brasileiro.
gostei do seu Jorge, mas gostei mais de saber que vc é contra o impeachment de Dilma ! xerus.
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